Bola de futebol
Futebol - Foto: IMAGO

«FC Porto, Benfica e Sporting são máquinas de propaganda»

José Quintela, antigo dirigente do Sporting, analisa fenómeno na tese de doutoramento do ISCTE «Os ‘Jogos’ do Jogo: Comunicação e Poder no Futebol Português». O papel da controvérsia e a semelhança com as estratégias políticas

Que o futebol mexe com milhões de pessoas, mesmo aquelas que não nutrem qualquer interesse pelo desporto rei, não é novidade, mas a forma como os três grandes influenciam o contexto mediático  português, à boleia de estruturas de comunicação altamente profissionalizadas, é cada vez mais visível e tem contribuído para uma mudança de paradigma. José Quintela, antigo dirigente do Sporting e investigador do CIES – IUL, analisou o fenómeno na sua tese de doutoramento do ISCTE Os 'Jogos' do Jogo: Comunicação e Poder no Futebol Português, e sublinha o papel do negócio da controvérsia.

«FC Porto, Benfica e Sporting tornaram-se máquinas de influência, propaganda e poder em Portugal, que ultrapassam o fenómeno desportivo, com a emergência cada vez maior do negócio da controvérsia, que acaba por ser motor económico para alguns negócios», explica a A BOLA o consultor em comunicação estratégica, detalhando uma das conclusões da investigação realizada e que envolveu mais de 4.600 respostas válidas.

O líder do Chega confundiu o 'Burgerfest' com festival de hambúrgueres. Depois, o lançamento da campanha presidencial abafa o fenómeno. Não digo que tenha sido para anular a gafe, mas pode anular

«Os média exploram conteúdos para gerar audiências e gerar receitas. Quem ganha mais com este negócio da controvérsia? Os clubes. Uma comunicação mais inflamada gera mais espaço mediático, desvia de temas incómodos e mobiliza adeptos para a sua causa», explica, antes de dar um exemplo vindo da política.

«Há uns dias, o líder do Chega, André Ventura, confundiu o Burgerfest, festival do cidadão, com festival de hambúrgueres, ocupou espaço mediático. Depois o lançamento da campanha presidencial acaba por abafar o fenómeno. Não digo que tenha sido para anular a gafe anterior, mas pode anular. Porque se assiste mais a estratégia deliberada do que a reação espontânea», constata.

José Quintela (D.R.)

E, em relação a esta matéria, torna-se visível que «a controvérsia é um ingrediente que alimenta os adeptos»: «Passam a ser produtores e distribuidores de conteúdos, assumem o papel de militante simbólico, uma identidade que perpetua o ciclo comunicacional dos clubes — uns fazem-no espontaneamente, outros são os clubes que vão instrumentalizando, alimentando-os com informações, fazendo-os sentir-se distinguidos por essas informações.»

Os 'sound bites' tornam-se virais, tanto pelos que se reveem nas posições como pelos 'haters', que os usam para destilar ódio, que é gerador de audiência, porque no final do dia é preciso pagar contas. Acabam por ser adeptos intérpretes legitimados pelos clubes

«Os comentadores desportivos são outros atores desta controvérsia, transformam episódios banais em casos mediáticos, que estendem o ciclo de vida de uma controvérsia, até aparecer outra. A notoriedade surge pelos sound bites que se tornam virais, tanto pelos que se reveem nas posições como pelos haters, porque se servem destas declarações para destilar ódio, que é gerador de audiência, porque no final do dia é preciso pagar contas e estes comentadores geram audiências. Acabam por ser adeptos intérpretes legitimados pelos clubes», observa.

«Há os que estão alinhados com as direções, uns mais independentes, mas também os que fazem parte de fações opositoras. Assistimos por vezes a comentadores camuflados que servem interesses de clubes e personalidades, sem declarar esse apoio. Nada os distingue dos políticos. E tanto os políticos como empresários atores desta controvérsia encontram nela vantagens porque servem de cortina de fumo, para afastar escândalos. A melhor forma de combater um escândalo é divulgando um maior. Como o futebol é rico em polémica e é transversal à sociedade, isto é importado da política para o futebol», explica, acrescentando que «é mau, mas é um negócio subjacente», que alimenta todos estes atores.

O homem do presidente

No contexto atual, os clubes têm os seus próprios meios de partilha de conteúdos e uma figura ganha destaque, contribuindo de forma significativa para o modo como o público é influenciado: o diretor de comunicação.

São máquinas de influência porque são modelos unidirecionais, propagandísticos, o que aliado à iliteracia mediática facilita a manipulação dos adeptos para fins além do desporto

«Os clubes começaram a ter plataformas de comunicação e dispensaram a incómoda intermediação jornalística: falam como querem, onde querem e voltam a gravar se não está como querem, e os média jornalísticos servem de caixas de ressonância destes conteúdos. Além de plataformas de comunicação, os clubes têm profissionais mais robustos que circulam cada vez melhor nos ciclos de poder, o homem do presidente. São máquinas de influência porque são modelos unidirecionais, propagandísticos, o que aliado à iliteracia mediática facilita a manipulação dos adeptos para fins além do desporto. Há uma maior capacidade para serem manipulados para fins que não estritamente clubísticos, mas pessoais, de negócios», nota o investigador.

José Quintela, que integrou o Conselho Diretivo do Sporting entre 2013 e 2018, detalha o perfil desta figura de destaque nos clubes da atualidade, dando um exemplo do passado recente do Benfica. «São perfis de pessoas com experiência empresarial e política. Luís Bernardo foi assessor de Guterres e Sócrates, faz campanhas políticas, tem um fenómeno marcadamente empresarial e político, não é o perfil a que assistíamos anteriormente, que era o do jornalista desportivo que ia para assessor. Hoje já tem dimensão estratégica», esclareceu.

A construção das narrativas em torno dos árbitros são criadas para gerar cortinas de fumo

A pressão exercida sobre os árbitros foi outro dos assuntos abordados nesta analogia com a política. «As ferramentas que são utilizadas, as formas como pressionam, incluindo o árbitro... mas o árbitro é um clássico, é o único que consegue unanimidade nos assobios e nos insultos, é a figura mais fácil. A construção das narrativas em torno dos árbitros é criada para gerar cortinas de fumo. Uma coisa é pressão, outra resultado. A comunicação tem influência sobre a arbitragem, mas não sabemos qual o sentido. Quando uma estrutura de comunicação influencia o árbitro, este está condicionado, mas não sabemos se vai ajudar ou prejudicar. É o chamado pau de dois bicos.»

Não interessa tanto se é verdade ou mentira, vivemos na ditadura do algoritmo

Quanto à credibilidade, lembra que a digitalização dos média não tem tido contributo positivo: «Não interessa tanto se é verdade ou mentira, vivemos na ditadura do algoritmo. É um desígnio nacional termos maior formação na área da literacia mediática. É um campo que pode ser perigoso dependendo da finalidade.»