«Enquanto formos um país desunido é improvável termos sucesso»
A Serie A (Itália) e os seus principais emblemas estão a reconquistar a dimensão e importância perdidas para outras das ligas ‘Big 5’ do velho continente (mais Inglaterra, Alemanha, Espanha e França), por muito que o desafio e apelo de salários e contratos chorudos que chegam agora da Arábia Saudita e do Médio Oriente estejam a ‘varrer’ o mapa de muitos craques: este o prognóstico traçado pelo antigo técnico Arrigo Sacchi, de 77 anos.
O antigo treinador de Parma, Atlético de Madrid, Real Madrid, mas que granjeou fama e respeito mundiais pela magia imprimida ao AC Milan sob a sua égide e presidência do malogrado Sílvio Berlusconi – duas Taças dos Clubes Campeões Europeus, em 1989 e 1990, a última delas em final diante do Benfica, em Viena (1-0 no Estádio do Prater, golo de Frank Rijkaard) -, com o ‘trio maravilha dos Países Baixos constituído, além de Rijkaard, por Ruud Gullit e Marco Van Basten, considerou este domingo, em entrevista à SportMediaSet, que não há razão para temer a ‘razia’ de craques no futebol europeu, e em particular na perda de qualidade do espetáculo no campeonato italiano, mesmo com muitos dos atuais a demandarem outros continentes.
«Nas últimas duas épocas, na Serie A, as ideias superaram o dinheiro. Tanto no título do Milan [2021/22] como agora no do Nápoles [2022/23]. A equipa mais rica não conquistou o ‘scudetto’. Prova que, com ideias, é possível vencer. Eram duas equipas que não eram as principais favoritas a ganhar o campeonato, o que demonstra, como digo, que as ideias ganharam ao dinheiro. A Lazio terminou em segundo lugar na pretérita temporada, mas os clubes que mais gastaram foram a Juventus, o Inter de Mição e a Roma», considerou aquele cujas palavras obrigam, sempre a reflexão, pela experiência feita. SportMediaset.
O veterano relacionou a recuperação do futebol italiano à criação de um estilo que se imponha sobre os adversários:
«Estilo? O futebol italiano nunca teve um estilo. Pensamos que somos muito criativos, para dar um estilo ou cunho próprios à equipa. Ou então, somos muito táticos. Não termos um estilo torna-se ainda mais difícil para a seleção, onde os estágios são curtos e [os jogadores] têm poucos dias para tentar aprender. Ora ninguém aprende em dez dias. Mas algo se está a mover: as equipas de menores recursos ou investimento competem e causam problemas aos grandes como já não acontecia», afirmou o antigo técnico e selecionador de Itália (de 1991 a 1996), na sua análise à realidade e à evolução do futebol do seu país nas décadas mais recentes.
A solução para o virtuosismo e competitividade do futebol italiano ser plena, no entender de Sacchi, passa por uma receita. «Devemos aprender a ser menos presunçosos. Devemos colocar mais ideias de jogo e melhorar as equipas. Mas fazer isso na Itália é improvável», considerou, explicando a razão.
«Seria a maior riqueza do país. Porém, somos um povo individualista. A nossa dívida [externa, de Itália] está na casa dos milhares de milhões de euros. Seguimos em frente, cientes de que o futebol representa muito da cultura e da história de um país. Aqui, ensinam-nos que ser espertalhão é algo bom e bonito… mas não é bem assim», foi o ‘mea culpa’ traçado no retrato de Sacchi à sociedade italiana, muito para além do futebol.
E quanto à qualidade dos treinadores italianos, aquele que é, para muitos, um ‘mago’, a referência principal ou inspiração para rasgar horizontes, ambição e nos métodos de treino é pragmático.
«Pep Guardiola é um grande treinador, mas atenção: há muitos bons técnicos italianos! Pela primeira vez, acho que temos [na Serie A] cinco ou seis estrategas. Todavia, não é só no futebol que há poucos estrategas e demasiados teóricos da tática. Os apologistas da tática, esperam pelo erro, pelo momento de te ferir, de te bater; já os estrategas têm um projeto maior e sabem como lá chegar [ao objetivo]. Amo o futebol, e espero bem que a Itália tenha um estilo próprio, mas e enquanto estivermos desunidos como país, é improvável que possamos ter sucesso», foi o diagnóstico traçado por Arrigo Sacchi.
A sempre intensa relação que, no Milan, manteve com o malogrado Sílvio Berlusconi, também mereceu uma referência especial, com Sacchi grato à visão do presidente e dono dos ‘rossoneri’ no seu consulado de glória à frente do clube (além de bicampeão europeu, venceram o ‘scudetto’ em 1987/88, a Supertaça de Itália em 1989, a Supertaça da UEFA em 1990 e 1991 e a Taça Intercontinental em 1990 e 1991).
«Nos últimos tempos [de vida de Berlusconi] já não mantínhamos muito o contato, pois ele teve muitos problemas. Estarei sempre grato a Berlusconi: foi bom comigo e também deu muito ao futebol. Se analisarem, nas décadas de 1980 e 1990 os clubes italianos conquistaram múltiplos títulos, o que depois se reduziu. [Berlusconi] foi muito bom comigo, entendeu que poderia ajudá-lo e acabou por me ajudar muito, também. Ninguém pode ter uma grande equipa se não tiver um grande clube por trás. E ele criou-o [o Milan, e sua estrutura]» concluiu, num tributo póstumo ao antigo primeiro-ministro italiano, falecido a 12 de junho, que durante 31 anos foi dono do Milan (1986 a 2017).