Raphaella Monteiro conquistou o bicampeonato com o Benfica e venceu o prémio de MVP

«Deviam habituar-se a ver pessoas pretas a vencer»

Raphaella Monteiro nasceu numa família humilde no Rio de Janeiro. Negra, gay, atleta, uma conjugação que só a tornou mais forte, num mundo «machista», onde há crimes de «racismo». No fim, o que conta é o amor incondicional dos pais

— Já disse que gostava de trabalhar, na área da psicologia, com pessoas em dificuldades, com a comunidade LGBT. É uma forma de retribuir ou é voltar ao início?

— Na verdade, é por entender as minorias, as pessoas que têm pouco acesso a isso. Tenho planos para conseguir atender essas pessoas, pessoas que não têm acesso, porque não é uma área barata, é cara. Quero dar apoio a esse tipo de pessoas, as pessoas LGBT, as pessoas mais carentes, porque são pessoas que precisam. Nem toda a gente tem um apoio familiar como eu tive da minha família. Quero representar esse cuidado, apoio.

— Foi uma luta porque vinhas da Mangueira, és negra, gay e atleta? É uma combinação bombástica?

— Isso realmente é um paradigma, podemos dizer assim, porque já não é fácil ser mulher, sabemos o quanto o mundo é machista, não é fácil ser negra, preta como dizemos no Brasil, porque somos discriminados pela nossa cor, somos diminuídos porque temos menos potencial ou não tem potencial para estar ali. Eu senti, sim. Quando comecei a entender melhor, comecei a perceber que aquelas coisas eram racismo, que passava por isso, algumas vezes sem saber. Depois eu comecei a ler, comecei a entender. No Brasil temos o crime racial. Depois entendi o quanto as pessoas ainda eram racistas. Foi quando percebi que teria de trabalhar muito mais, teria de ser 10 vezes melhor para poder ser, para que meu trabalho fosse valorizado. Mas é uma pauta [tema] que ainda é triste. Ainda acontece muito, vê-se em todos os cantos, nos jornais. É uma luta diária e acho que as pessoas deviam habituar-se a ver pessoas pretas vencendo, porque faz parte do processo. Elas trabalham tanto quanto as outras, ou até mais, muitas vezes.

— Foi por isso que decidiu trazer esses temas para o público?

— Já passei por muita coisa, não tenho porquê esconder-me. O meu trabalho é honesto, tudo que eu faço, aquilo a que me entrego, então não tenho porquê esconder-me. Se a minha família me aceita como sou, isso é o ponto principal. Muitas vezes as pessoas não têm esse apoio familiar, que faz toda a diferença. Eu não vim para esse mundo para me esconder, vim para esse mundo para mostrar a realidade e que pessoas como eu podem vencer. Isso é incentivo para as crianças, para as pessoas que saem de famílias carentes, de comunidades, ver que há uma oportunidade. Se eu estou aqui, se eu tenho essa oportunidade e tenho a oportunidade de falar, eu tenho de falar e ajudar essas pessoas que muitas vezes não têm voz.

— E onde é que quer chegar?

— Não sei. Dizem que o céu é o limite. Eu quero muita coisa, quero alcançar tudo o que for possível. Como psicóloga, como atleta, quero conquistar, quero fazer muito, quero poder fazer muito ainda pela minha comunidade, pelas pessoas que esperam de mim, pelos meus pais, poder dar-lhes uma vida melhor, que é um dos meus sonhos. Espero que o basquetebol feminino seja valorizado a ponto de poder descansar, não pensar só em trabalhar. A equiparação salarial ainda é um ponto muito delicado, mas estamos a lutar para que possa ser valorizado tanto quanto o masculino. Quero alcançar tudo o que puder, tenho sede de vitória. Tenho vontade, tenho garra para vencer. É isso.

— Vai ficar no Benfica?

— Ainda não sei o que vai acontecer, nada conversado, mas tenho a certeza que esse lugar vai ter sempre o meu coração, vai ser sempre a minha segunda casa, independente do futuro. Como atleta temos de procurar o melhor. Aqui é um grande lugar, vou ter sempre um carinho enorme e estes dias foram muito tristes, quando me despedi para ir para o Brasil. O Benfica tem meu coração, é indescritível ter passado por aqui, estar num clube como este, ter o meu trabalho ser reconhecido, porque querendo ou não trabalhamos para que as pessoas reconheçam o nosso trabalho. Sabemos o quanto isso é importante e faz a diferença. Aqui encontrei isso, um lugar acolhedor e vou ser grata eternamente.