O futebol contado e o futebol para acéfalos
É um fenómeno curioso e cada vez mais frequente. Antigos atletas, treinadores e dirigentes revelam episódios das respetivas carreiras vividos num passado longínquo, quase sempre num registo descontraído. Relatos que, na altura, eram impossíveis de partilhar por serem demasiado sensíveis, demasiado polémicos, demasiado intensos. Hoje, vistos à distância, são narrados com humor, ironia e uma franqueza surpreendente. E ainda bem, congratulo-me eu, suspeito por participar num videocast aqui de A BOLA, o Toque de Bola, com os meus camaradas Fernando Urbano e Rogério Azevedo, no qual procuramos viajar no tempo...
Quando um ex-jogador conta uma discussão no balneário, os bastidores de uma transferência, uma situação invulgar numa grande competição ou uma opção controversa de um técnico, não se limita a entreter. Ajuda-nos a compreender melhor como o desporto era sentido, aproxima figuras que durante anos pareceram inacessíveis, observadas em exclusivo através das lentes da rivalidade ou dos duelos do fim de semana ou das míticas quartas-feiras europeias.
O contraste com a atualidade é brutal, como confirmo ao ouvir inúmeras (in)confidências em podcasts de nomes sonantes do futebol em Portugal e, sobretudo, no Brasil — pesquise por Vampeta no YouTube e verá que vale a pena... — com o traço comum de não desempenharem já os papéis de outrora.
Vivemos mergulhados em confusões contínuas. Todos os dias há uma nova controvérsia, uma tentativa de manipulação, um lance analisado até à exaustão, uma indignação imediata nas redes sociais. Tudo é urgente, definitivo, tratado como se fosse perdurar eternamente. Mas quase nada resiste à espuma dos dias. Dentro de poucos anos, ninguém quererá recordar a maioria dessas farsas, sustentadas só pelo burburinho momentâneo. Já as histórias assentes nas pessoas, nas emoções e no jogo vivido com autenticidade resistem e encantam. É essencial compreender o valor de relativizar, verbo que parece escapar aos protagonistas atuais, enquanto se privilegia o escândalo fácil. Cada decisão duvidosa é transformada numa tese de doutoramento, a forma de alimentar debates estéreis, como se a bola fosse alheia ao próprio jogo.
Talvez por isso ouvir vozes do passado soe tão revigorante. Não falam para conquistar audiências nem para criar narrativas para acéfalos. Falam porque já nada têm a provar e nessa liberdade reside a força das palavras. O futebol precisa desses testemunhos para reconhecer que a sua essência é uma soma de histórias que vale a pena contar. Caso contrário, corre o risco de se tornar apenas ruído passageiro, um prisioneiro de novelas descartáveis em que tudo parece relevante — até à semana seguinte, quando já ninguém se lembra.