Abençoado apagão
Há muito que não via, num dia de semana, tantos miúdos na rua. Caminhando em bandos, com sorridos cúmplices, gargalhada fácil, vozes estridentes. Os parques da cidade encheram-se, campos desportivos à pinha, bicicletas rompendo caminhos em vertigem.
Do alto de um quinto andar uma voz cortante de uma mulher mais velha, avisando o Carlos que às oito tinha de estar em casa para jantar. E o Carlos, pelo menos assim me pareceu, a dizer que sim por instinto, mais concentrado no jogo do que no jantar. Há dias em que tempos de decidir o que mais nos alimenta...
Foi nesse momento que me deu uma saudade imensa de um tempo em que o tempo não se media pelo relógio. O sol ditava as horas e os ritmos e era mais generoso no verão. Um tempo em que saía de casa de manhã, aparecia para almoçar à pressa, abastecendo mais rápido que um F1 em plena corrida, e só voltava a casa ao anoitecer. Muitas vezes ouvia das boas da minha mãe, zangada pela hora tardia; pelos arranhões nos joelhos e mais umas calças para remendar; por uma t'shirt que, jurava ela, era branca ao sair de manhã; um tempo em que se perdia peso apenas por se tomar banho.... Em que adormecia exausto, dormia na paz dos anjos e acordava pronto para repetir a dose... Porque o sol é que marcava as horas e o ritmo.
Recupero destas divagações para voltar a sentir o pulsar dos parques e campos da cidade. Os miúdos continuam felizes, despreocupados... Abençoado apagão. Às vezes as coisas acontecem para nos lembrarmos do que realmente precisamos ou não. O que nos faz ou não felizes. Para nos provar que, afinal, há vida para além da selfie, do post, do reel... Que uma bola ou uma bicicleta podem ser mais divertidas que as armas virtuais de um Counter Strike que se joga num quarto fechado. Sem eletricidade, os miúdos foram para a rua. E deixaram os telemóveis em casa. Trocaram a voltagem pela voragem de um dia ao ar livre.
Não vi ninguém contrariado. Os pais que se preocupassem com os garrafões de água e os rolos de papel higiénico, o dia e a rua eram deles. E nós pais, que nos fizemos na rua, que aprendemos a negociar na rua, que descobrimos o sabor da fruta na rua, que tocávamos às campainhas e fugíamos como perigosos meliantes, deveríamos estar felizes por eles. E aproveitar a embalagem. Talvez seja mais culpa nossa do que deles terem trocado os horizontes da paisagem pelas quatro paredes do quarto.
Se mandasse, haveria de decretar um dia por mês como o dia do apagão... Desligávamos o quadro de eletricidade em casa e mandávamos os miúdos para a rua...
Está a anoitecer e a senhora mais velha da voz cortante volta a chamar pelo Carlos. E o Carlos volta a fazer ouvidos moucos. Pelos que percebi só faltava um golo para se saber o vencedor. Há mais de uma hora que faltava. E àquele quadro, que me pareceu edílico, tratrei de juntar banda sonora, na voz da Voz: Carlos do Carmo.
Uma bola de pano,
num charco
Um sorriso traquina,
um chuto
Na ladeira a correr, um arco
E o céu no olhar, dum puto».
Parecem bandos de pardais à solta,
os putos, os putos.
São como índios, capitães da malta
os putos, os putos...
Abençoado Apagão