Jéssica Silva, Bebiana Sabino, Patrícia Sampaio e Nancy Moreira lutaram contra os preconceitos para singrarem nas modalidades onde são exemplo e vencedoras. A luta continua. Sempre. De sorriso no rosto
Como é que começaram os amores destas quatro mulheres? «Acho que nasci com isto. Nasci com este amor pela bola. Não pelo futebol. Pela bola», diz Jéssica Silva de alegria estampada na cara. Outra apaixonada, mas pelo andebol, tenta justificar o amor: «Foi um pouco espontâneo. Foi o andebol como poderia ter sido outra modalidade. No meu quarto ano, na escola primária, houve um torneio entre turmas, e no final do clube convidou-me. Surgiu aí o andebol e manteve-se sempre na minha vida», recorda Bebiana Sabino.
Nancy Moreira também foi ao baú das memórias, mas mais recentes, justificar a dedicação ao boxe: «Este amor entrou na minha vida aos 23 anos. Comecei a praticar apenas para perder peso, porque na altura jogava futebol e o meu treinador disse que era melhor praticar um bocadinho de boxe, porque ajudava muito a perder peso. Curiosamente, tinha um cunhado que era campeão de boxe e ele levou-me a fazer um treino. Recordo-me que fiquei de cama uma semana, por causa daquele treino, mas eu acho que ele exagerou um bocado [risos]. Passado um mês voltei e fiquei até os dias de hoje.»
O judo entrou na vida de Patrícia Sampaio bem mais cedo. «O meu irmão mais velho, que agora é meu treinador, faz judo desde os 5 anos. Ele e o meu pai, que era futebolista e sempre muito ligado ao desporto, e o mestre dele na altura insistiram sempre muito para eu experimentar o judo. Na altura não praticava nenhum desporto, só brincava muito na rua, em Tomar, à frente do café da minha mãe. Mas, depois de tanta insistência deles, com cerca de 7 anos, fui experimentar o judo. E pronto, ficou até hoje.»
Também bem na infância começou o amor maior de Jéssica Silva pelo futebol. «A minha mãe diz-me que a memória mais antiga que tem é de me ver a dar chutos a qualquer coisa. Desde que tivesse uma forma esférica. Lembro-me claramente de arrancar as cabeças dos Nenucos da minha irmã ou as laranjas do jardim da minha avó. Tudo servia», conta-nos, desconfiando que deve ter tido origem num qualquer gene no progenitor: «Este amor já nasceu comigo e muito sinceramente acho que vem do meu pai, que jogou futebol. Eu acho que nasci com isso, por causa dele.»
Desde sempre habituadas a ultrapassar obstáculos as meninas foram crescendo, «Quando eu iniciei era só um ringue. Portanto, sempre que chovia nós não treinávamos. Debaixo das bancadas havia um espaço e fazíamos lá algum tipo de treino, mas não treinávamos. Sempre fui muito competitiva, gostava de ganhar e de uma forma muito natural o andebol passou a fazer parte da minha vida. Não consigo identificar um ponto no tempo em que deixou de ser uma atividade extracurricular e passou a ser algo mais sério», recorda a capitã da Seleção Nacional.
Foi também o gosto pela competição que cativou Nancy Moreira: «Foi sem dúvida a competição. Eu queria muito ser reconhecida em qualquer desporto que fizesse. Sempre pratiquei desporto. Comecei no atletismo, joguei futsal e futebol de 11. O que me motivava era ser reconhecida pelo meu talento e esforço. Tenho essa força interior por causa da minha mãe, que é uma mulher guerreira, que veio para Portugal à procura de melhores condições de vida para os filhos. Ela sempre lutou e eu sempre batalhei e nunca desisti. É uma garra gigante que não me deixa desistir, que me ajuda a persistir», diz decidida esta cabo-verdiana, que para fintar a falta de apoios para o boxe candidatou-se a «fazer parte dos atletas apoiados pelos Heróis Betano».
A força com que cresceram nas modalidades que praticam foi também moldando as amizades. «Fiz muitas amizades logo no judo. Saía da escola e tinha uma amiga na minha turma que na altura também fazia judo e íamos juntas muitas vezes para o treino. Ela, entretanto, desistiu e eu passei a ir sozinha. Mas fiz lá muitas amizades e muitas delas duram até hoje», admite a judoca medalha de bronze nos JO Paris-2024, prosseguindo: «Às vezes fico triste por não termos meninas na turma. De vez em quando apareciam uma ou duas. Acho que no máximo fomos três na minha turma no clube, em Tomar, mas todas acabaram por desistir. Fui a única que ao longo destes 16 anos começou e continua.»
Aos dias de hoje a realidade do futebol no feminino é bem diferente. «Deixa-me bastante feliz ver miúdas a quererem jogar, a quererem ser jogadoras de futebol. E a ser-lhes permitido sonhar com isso. Isso é algo que me deixa bastante feliz. Ou seja, é algo que me apaixona muito, sinceramente. Quando eu comecei, não era tema. Mas se ainda hoje jogo futebol, é muito pela paixão que tenho pelo jogo, por jogar. Eu divirto-me mesmo. Continua a ser o meu trabalho, mas também o meu hobby favorito», confessa Jéssica Silva, reforçando: «Sou uma jogadora muito feliz, orgulhosa, muito serena e muito apaixonada pela vida. O futebol fez-me crescer. Sou muito agradecida ao futebol porque me abriu o mundo. Tornei-me uma mulher. Permite-me ser feliz e ter um salário a fazer aquilo que mais amo.»
«Sou muito feliz por ser mulher e estou rodeada de mulheres incríveis»
Jéssica Silva, Futebol
Estas mulheres olham de frente para os obstáculos. Sem medos. «Quando entramos em campo entramos sempre para ganhar, mas sabemos as dificuldades que temos. Muitas atletas que continuam a nível interno têm de abdicar muito daquilo que é a sua vida pessoal para competir ao mais alto nível, porque não têm condições para treinar da forma exigida para estar no alto rendimento», aponta Bebiana Sabino, consciente de que essa é a sua realidade.
A capitã nacional de andebol percorre mais de mil quilómetros por semana para jogar. Vive em Beja, onde é professora universitária, treina em Serpa, com a equipa masculina desta vila do Baixo Alentejo, e viaja até ao Norte semanalmente para jogar pela equipa feminina do Colégio de Gaia: «Eu faço muitos sacrifícios para conseguir continuar a lutar por esta paixão, mas que eu seja um exemplo a não seguir. Que as mulheres não tenham de fazer esta minha luta diária por uma paixão. Que tenham uma vida muito mais facilitada. Que olhem para mim como um exemplo de superação e de resiliência, mas que as próximas atletas não sejam como eu.»
Preconceito do físico ideal
Nancy Moreira dedica-se ao boxe há 13 anos e reconhece que nem sabe onde vai encontrar tanta determinação: «Estes anos todos têm sido muito difíceis e até me pergunto: como é que fazes isto? Já tive muitas situações de voltar de um campeonato e estar absolutamente a zeros, sem dinheiro, e ter que começar de novo. Às vezes também me sacrifico por causa desta minha insistência, mas graças a Deus tenho vindo a encontrar boas pessoas na minha vida. Por exemplo, se vencesse o campeonato africano, subia ao segundo lugar do mundo. Mas,competir custava 6 mil euros... Então, fiz um empréstimo e fui. Fiz quatro combates, ganhei os quatro combates e venci o campeonato africano. E foi aí que recebi uma mensagem do Dino D’ Santiago que tinha visto a minha história e prontificou-se a ajudar-me. Deu-me dois mil euros que tinha recebido de um espetáculo e fez um desenho meu que colocou à venda. Um cabo-verdiano que vivia em França comprou-o. Com esse dinheiro que o Dino D’Santiago me deu paguei o empréstimo ao banco. Fui campeã africana e fiquei sem dívidas.»
Nunca conversa sem reservas, o preconceito do corpo das mulheres atletas foi sentido na pele por este nosso quarteto fantástico. «Senti em alguns momentos o preconceito relativamente à questão do corpo, pelo facto de ser uma mulher atleta. Arriscaria-me a dizer que, ao longo do meu percurso, foram-se perdendo algumas jogadoras precisamente por este complexo corporal da prática desportiva, de alto rendimento, que vai obviamente alterar o corpo. O corpo ideal, que a sociedade idealiza para a mulher, não é o corpo de uma mulher atleta. Esta crise de identidade para algumas meninas foi um passo para desistirem da modalidade», diz sem papas na língua Bebiana Sabino.
«O corpo ideal, que a sociedade idealiza, não é de uma mulher atleta»
Bebiana Sabino, Andebol
Também Nancy Moreira sentiu o peso de ter decidido ser pugilista: «É curioso dizer isto, mas senti mais preconceito das mulheres do que propriamente dos homens, porque ouvia muitos comentários como: 'não vais conseguir ter filhos. Isto é um desporto de homem. Vais ficar cheia de músculos.’ Sempre tentei provar que poderia estar ao mesmo patamar, provando que é mentira. Que o boxe, ao contrário daquilo que pensavam, é um desporto olímpico, que ajuda na nossa autoestima, que alivia o stress. É um desporto que nos ajuda a estar fisicamente muito bem e só tem coisas positivas.»
Nancy Moreira é mãe de dois rapazes e é atualmente a número 2 do ranking mundial na categoria 66 kg.
Jéssica Silva recorda que no início não foi fácil ser mulher no futebol. «Cresci a aceitar que era algo longínquo. Cresci a aceitar que o futebol era para os homens. O futebol não era para as mulheres. Isso não me causava tristeza. Ou, se calhar, no meu íntimo, foi o que fez passar-me pela cabeça, em miúda, ‘quem me dera ser rapaz e poder jogar futebol’. Entrei no futebol aos 14 anos e aos 16 estreei-me na Seleção A. Efetivamente percebi que tinha talento e depois as coisas foram acontecendo», diz a internacional portuguesa que a pulso se tornou uma referência.
«Às vezes fico triste por não termos meninas na turma do clube, em Tomar. De vez em quando apareciam uma ou duas e no máximo fomos três, mas todas acabaram por desistir
Patrícia Sampaio, Judo
Nesta batalha contra o preconceito ainda há muito para fazer, para respeitar as diferenças. «Um preconceito que eu sinto, que ainda há um pouquinho no judo, e até no desporto em geral, é usar a expressão judo de raparigas, ou não quero ver as raparigas a fazer judo. Há sempre este preconceito de não ser tão bonito ou agradável de se ver. Hoje em dia já vemos muitas raparigas a fazer grandes projeções e a fazer combates impressionantes. Acredito que se está a caminhar para acabar com esse pensamento», refere a judoca, para quem o bronze nos Jogos Olímpicos lhe valeu dar nome ao pavilhão da terra: «Eu preparei-me muito para os Jogos Olímpicos. Preparei-me para ser campeã olímpica e sonhava todos os dias com aquelas medalhas. Preparei-me para os combates, e para a conquista, mas não me preparei para o que vinha dela. Não estava preparada para o que ia acontecer depois. Para o que ia dizer nas entrevistas. Aliás, a minha cabeça só pensava os Jogos Olímpicos e nas medalhas. É engraçado, porque agora vou ao pavilhão assistir aos jogos de hóquei do Sporting de Tomar e quando dizem no microfone, Pavilhão Municipal Patrícia Sampaio, fico envergonhada.»
Patrícia Sampaio só deseja que este impacto da conquista de Paris permita a mais mulheres seguir no judo. «Querendo ou não, agora sou uma referência. Sou um nome que tem vindo a crescer na modalidade e sei que tenho a responsabilidade de passar uma boa imagem.»
Se fosse possível mudar alguma coisa, Bebiana Sabino sabe bem o que mudaria... «O facto de não poder ambicionar ser jogadora de andebol quando foi a minha opção profissional. Nunca encarei que pudesse ter um vencimento único e exclusivamente do andebol. Na atualidade as coisas estão diferentes, felizmente. O primeiro clube onde estive com andebol masculino e feminino foi no Madeira SAD. Partilhávamos o mesmo pavilhão e eles treinavam sempre num horário mais favorável do que o nosso. Na altura, para mim, estava tudo bem, pois gostava era de jogar, mas possivelmente isto não deveria ser assim.»
«É uma garra gigante que não me deixa desistir»
Nancy Moreira, Boxe
Também Nancy Moreira sentiu diferenças pelo género, mas conseguiu atenuá-las. «Via-se muita diferença entre o homem e a mulher, mesmo nos treinos. Faziam muito a divisão, aquela é mulher, aquele é homem. Mas rapidamente também consegui que esse tipo de divisão não continuasse, provando que eu poderia ser igual, ou até melhor, do que um homem nos treinos», conta a pugilista.
Este quarteto de mulheres fantásticas não tem dúvidas de que é pelo exemplo que querem passar a mensagem para as gerações seguintes. «É um orgulho muito grande tudo o que conseguimos. É o reflexo de muito trabalho. Procuro passar sempre isto às minhas colegas mais jovens. Isto não é fácil e a maior parte das pessoas não tem a ideia do que custa um apuramento para um Campeonato da Europa. Foram muitos anos de trabalho, com um investimento muito fraco ao nível do desporto nacional. Isso não nos permite alcançar grandes resultados, porque temos de ir passo a passo e não podemos querer grandes resultados», diz a capitã da Seleção Nacional que marcou presença nos dois apuramentos para Europeus conseguidos no andebol.
A futebolista Jéssica Silva recorda que não assimilou a dimensão da conquista de «ser a primeira portuguesa a ganhar a Champions League [Lyon]». «Ganhei, fiquei muito feliz, mas nem tive noção do impacto de ser a primeira portuguesa», recorda, deixando um conselho para as futuras jogadoras de futebol. «Trabalhem, sejam sonhadoras, não se acomodem. Juntem a capacidade de trabalhar, à vontade e ao talento. Agora já consigo assumir aquilo que ganhei, aquilo que conquistei e às vezes o talento não é tudo. Acho que é importante nós sermos resilientes, porque há portas que se fecham. Sinto que quando nos apoiamos umas às outras é tudo muito mais fácil e temos muito mais força.»
Nesta determinação no feminino, a máxima é acreditar. Sempre. «O importante é nunca desistirem dos objetivos e sonhos, mesmo com dificuldades, mesmo com trabalho, mesmo com filhos. Não desistam a continuem a lutar», conclui Nancy Moreira.
Para assinalar o Dia da Mulher escolhemos quatro mulheres, de quatro modalidades. Quatro raízes diferentes. Quatro mulheres guerreiras e acima de tudo apaixonadas pelo desporto: Jéssica Silva, Patrícia Sampaio, Bebiana Sabino e Nancy Moreira