Entrevista a Tiago Moutinho «Qualidade de jogo da Académica levou-me para a Jordânia»

NACIONAL07.12.202410:00

Tiago Moutinho teve curta experiência no Al Hussein, ao serviço do qual teve pela frente dificuldades inesperadas, e está de regresso a Portugal, em busca de novo projeto. O treinador conta várias peripécias, entre as quais a do jogo que começou com muito atraso, porque havia duas equipas já em campo

- Conta-nos como foi a tua experiência na Jordânia, no Al Hussein.

 - Acabou por ser um bocadinho curta, mas foi boa, como todas. São aprendizagens. No ano passado, estava lá um treinador português, o João Mota, que se sagrou campeão, e o convite surgiu de forma até curiosa, através de um scout do clube que gostava muito dos treinadores portugueses. Observava jogadores em Portugal e chamou-lhe a atenção a forma como a Académica jogava, a qualidade do jogo, o estilo ofensivo, os muitos golos marcados e os poucos sofridos. Entrou em contato comigo. O convite não surgiu por terceiros, foi logo direto e, sim, na altura...

 - Mas é um choque de realidade, não é?

 - É. É um choque...

 - Estavas mais ou menos preparado, certo?

 - Sim, porém é mentalmente difícil. Há sempre um período em que esperamos para ver o que vai acontecer. Depois, as conversas surgiram, foram interessantes e havia também a questão financeira, que também me fez pensar. E assim fui. Também gosto de desafios, tal como aconteceu com a Grécia, a Sérvia, a China e a Espanha. Era ainda um desafio interessante treinar o campeão nacional da Jordânia, com um acrescento muito grande que era jogar a Champions League. Abracei este projeto, mas cheguei lá e encontrei uma realidade diferente daquela que esperava.

 - Eles não fizeram nenhum tipo de preparação, não te apresentaram algo?

 - Não, curiosamente não. Pedi para ver algumas imagens do campo de treinos... Claro que me informei com quem esteve no ano anterior e as referências eram boas. Sabia que era um projeto com muitos jogadores que estavam e estão na seleção, e o objetivo era voltar a ser campeão. Vi ainda alguns jogos da época anterior, portanto fiz esse trabalho de casa. Identifiquei que tinham uma equipa bastante superior aos outros, portanto também seria um projeto em que todos os jogos seriam para ganhar. E quando lá cheguei não era só ganhar por 1-0 ou 2-0. Lembro-me de que vencemos o primeiro jogo por 2-0, fui a uma pastelaria e disseram-me: «Então, aquilo não correu lá muito bem…» Ganhámos só 2-0 e ali a fasquia era muito alta, queriam sempre ganhar por 3 ou 4, porque tinham 11 jogadores na seleção.

 - O que era uma dificuldade…

 - Grande dificuldade, tive muitos constrangimentos. Cheguei um mês antes e só começámos a treinar a três semanas do arranque. E este ano e no próximo joga-se o apuramento para o Campeonato do Mundo e há a possibilidade de haver mais seleções asiáticas presentes. No grupo da Jordânia, passam dois diretamente e, com a Coreia do Sul e o Iraque, há uma disputa a três por essas vagas. É por isso que a seleção tem feito muitos estágios. Tinham terminado a época com um e, no início desta, fizeram outro porque o treinador era novo e queria conhecer os jogadores. Convocou 30 e tal e 11 eram do Al Hussein. Portanto, quando cheguei, não tinha os internacionais e os quatro estrangeiros permitidos ainda se encontravam de férias e sem visto, que ainda demora. Só chegaram entre o primeiro e o segundo jogo oficial do campeonato. Assim, para o primeiro encontro contei com os internacionais apenas uma semana e meia antes, período em que consegui fazer um único amigável, contra os 11 realizados no ano anterior, e diante de uma formação local. Treinávamos em sintético, dividido por mais duas equipas. O nosso estádio era municipal, não podíamos lá treinar porque éramos quatro equipas a utilizá-lo e não se podia estragar a relva. Fui para o primeiro jogo sem conhecer o estádio, depois de andar a treinar num sintético, que tinha também uns contentores como balneários e onde chegou a faltar a luz e a água. Foi um choque inicial, de que não estava mesmo à espera.

 - Isso contribuiu para que a experiência tivesse sido curta?

 - Sim, acaba por contribuir, apesar da experiência que tenho. Não foi a primeira vez que fui para fora. A cidade [Irbid] também não era um sítio muito fácil onde se viver. A capital Amã, sim, é uma cidade com qualidade, tanto que mais de 50% do plantel e principalmente os internacionais viviam lá… Agora, imaginem. Os jogadores faziam uma hora e um quarto de carro para ir treinar, treinavam e, depois, faziam uma hora e um quarto para regressar. Muitas vezes regressavam às 8, 9 da noite, porque treinávamos tarde, já que de manhã havia muito calor. Chegavam a casa a horas tardias, jantavam, dormiam, de manhã descansavam e depois tinham mais uma hora e um quarto de carro. Andavam para cima e para baixo. Muitas vezes, apareciam com dores nas costas. Era algo que não entendia. Como é que a direção permitia uma distância tão grande do local de treinos? No entanto, costumo dizer que é um erro mudar culturas e devemos sim tentar mudar comportamentos. Se era assim, não ia comprar uma guerra…

 - Contudo, essa decisão não te permitia aplicar tudo o que querias…

 - Sim, mais ainda porque não tínhamos muito tempo. De manhã, era impossível treinar, portanto fazer treinos e ver jogos em vídeo era complicado. Treinámos uma vez de manhã e quase que tive de terminar mais cedo, porque o sintético ficava muito quente e era impraticável estar lá. No fecho de mercado, apareceram dois jogadores contratados pela direção, por isso foi tudo muito… Um teve o meu aval, o outro não. Fomos tendo muitos constrangimentos e, no início da época, fizemos logo três jogos. Ganhámos dois, empatámos um e esse empate mexeu um pouco com tudo, com a estrutura… Depois, tivemos mais três jogos de campeonato e o da Liga dos Campeões, no Dubai, com a equipa do Paulo Sousa, com um orçamento superior, candidata e favorita a vencer a Liga dos Campeões, e foi essa a derrota que sofremos. O saldo foi de cinco vitórias, um empate e uma derrota em sete jogos.

Tiago Moutinho ao serviço do Al Hussein (DR)

 - E foi essa a derrota que precipitou o fim da aventura ou já tinhas tomado alguma decisão nesse sentido?

 - Não, confesso que não só por estes constrangimentos que fui encontrando, estas dificuldades… A língua também é difícil e não pude levar a minha equipa técnica, porque na altura disseram-me que para jogar na Liga dos Campeões era necessário ter o UEFA A e, assim, as duas pessoas que estavam comigo na Académica não puderam ir. Foi também uma coisa em cima da hora e acabou por ir outro treinador comigo, sem nunca termos trabalhado juntos... O conflito entre Palestina e Israel também teve a sua influência. Vivia numa cidade a 20 quilómetros da Síria, muito perto de Israel, e acordava com notícias de bombardeamentos a 80, 90 quilómetros de onde estava.

 - Tiveste algum problema?

 - Não, houve um pequeno susto na fronteira com Israel, não muito longe de onde estava, mas as pessoas entravam e saíam naturalmente... É um país seguro, um país neutral. Não tem muita riqueza, mas as pessoas sempre nos tranquilizaram. Só que isso vai sempre mexendo connosco, não é? Foi um conjunto de fatores e a derrota nesse jogo agravou a situação, porém também queria voltar, sentia necessidade de voltar. Ainda tínhamos dois jogos, que vencemos, e assim terminei com duas vitórias e manifestei essa vontade de voltar a Portugal.

Tiago Moutinho ao serviço do Al Hussein (DR)

 - Tens sempre uma atitude muito positiva sobre as coisas, mas tenho de te perguntar: sentes que aprendeste alguma coisa na Jordânia?

 - Muito. Acho que sim, acho que... Não só a reagir às adversidades, no dia a dia, àquelas de que não estamos à espera por questões culturais, linguísticas... A nossa obrigação é sempre procurar soluções diferentes. Gosto do equilíbrio. Muitas vezes, passa por ponderar aquilo que é correto ou não fazer. Aprendemos ao longo da vida o contar até 10, não é? Às vezes, faz-nos ter outra ponderação das coisas e não reagir muito a quente, porque é difícil... Na China, tinha um tradutor, mas ali, muitas vezes, não entendia os restantes treinadores. Era muito difícil trabalharmos e demorou algum tempo até conseguirmos ter alguma troca de ideias, porque também viviam em Amã e vinham uma hora e meia antes do treino. Tínhamos pouco tempo para conversar e gosto de ter tempo para trabalhar, analisar, preparar, planear treino e jogos, mas não existia isso. Havia algum amadorismo nesse aspeto.

- E esse amadorismo é acompanhado sempre por grandes histórias, não é?

- Muitas. Por exemplo, no último jogo, o nosso estádio, que era municipal, estava interditado por causa da relva, que não estava em boas condições. Aliás, no jogo que empatámos em casa a relva estava em péssimas condições. Não é desculpa nenhuma, mas facilita quem procura o jogo direto e em que a bola não passa muito pelo solo. O estádio estava interditado, tínhamos de encontrar um sítio para jogar e acabou por ser o do nosso adversário. Achei que era um bocadinho estranho, não concordei e transmiti a minha opinião, porém depois percebi que era o sítio mais próximo, ao qual os adeptos podiam deslocar-se. Não acaba aqui. O jogo era às nove, chegámos às sete e dirigi-me para o balneário, quando me disseram que ainda não podia ir. Mandaram-nos para as bancadas e estava a decorrer um jogo da II Liga, que se atrasou. Tivemos de esperar que acabasse, que fossem para os vestiários, tomassem banho e limpassem tudo para podermos entrar. Um jogo do campeão nacional na primeira liga da Jordânia e acontece isto… Das duas uma: ou compramos ali uma guerra, não concordamos e batemos de frente ou então encaramos como as tais aprendizagens que vamos tendo. Gosto de levar as coisas de uma forma positiva. Não gosto muito de me focar nos problemas e sim nas soluções, e foi o que fiz nesta etapa. As coisas acabaram por correr bem, mesmo os resultados, mas a saúde mental também é importante, tal como o facto de estar longe da família. Tenho dois filhos pequenos e também era difícil eles irem lá, por isso tudo se conjugou para a um certo ponto querer regressar a casa e procurar ser um bocadinho mais feliz.

Vídeos

shimmer
shimmer
shimmer
shimmer