Um beijo roubado à espanhola

OPINIÃO26.08.202306:30

O gesto obsceno de Rubiales, na tribuna de honra, ao lado da rainha Letizia, a comemorar o título mundial é o que torna o beijo mais sujo

Obeijo roubado de Luis Rubiales, presidente da Federação espanhola de Futebol, à futebolista Jenni Hermoso, durante os entusiásticos festejos do título mundial feminino de futebol tornou-se tema universal. Abuso sexista ou, apenas, um  excesso de entusiasmo? Esta é pergunta em relação à qual já ninguém quer ouvir a resposta. Para Rubiales, que teimosamente resiste ao pedido de demissão, tratou-se, apenas, de um «beijo consentido» num momento de exaltação coletivo, mas, desgraçadamente para o presidente da federação espanhola, essa não é a versão da jogadora. 

A verdade é que a Espanha inteira vive com mais intensidade a discussão sobre o beijo pecaminoso de Rubiales do que a exaltação do histórico título mundial. E isso é injusto para todas as campeãs do mundo, que se sentem, também elas, roubadas no seu direito à glória e à idolatria popular.

O título de campeãs do mundo parece ter acontecido há séculos e o beijo de Rubiales, por muitos dias que passem, parece ter acontecido ontem. Tornou-se assunto de Estado, o Rei já se pronunciou sobre o incidente. Tornou-se, também, assunto da UEFA e da FIFA e, em breve, se tornará assunto do Tribunal do Desporto, mas, mais importante do que isso, tornou-se assunto da guerra dos sexos.

«Abaixo o falso femininismo», gritou o líder do futebol espanhol, para quem, segundo argumentou, o beijo dado a Jenni foi como se o tivesse dado a uma filha. Não se sabe se a filha de Rubiales se sente humilhada pela comparação, mas sabe-se que o fogo da discussão alastrou por toda a espécie de moral pública. Para trás, e sem grande explicação, ficam os históricos beijos de Diego Maradona a Caniggia, durante um quente Boca Juniors-River Plate, ao que parece, o beijo mais ardente e apaixonado de todos. E também aquele beijo intenso e comprometedor de Rakitic ao português Daniel Carriço, nos festejos de uma Liga Europa conquistada, nos penáltis, ao Benfica.

Também para a história ficarão outros ósculos inquietantes, que correram mundo, um dos quais, na órbita política, entre o muito soviético Leonid Brejnev ao líder da antiga República Democrática Alemã, Erich Hoenecker e que selava, com esse gesto, a solidez do chamado mundo socialista. Era hábito, na época, os líderes do bloco comunista se saudarem com três beijos nas faces, mas, em caso de maior fraternidade e coesão política, os beijos eram dados na boca.

Outros tempos e, admito, outras vontades. No caso do beijo roubado à espanhola, não deixa de ser irónico que um potencial candidato ao cargo de Rubiales seja o nosso bem conhecido Iker Casillas, que depois de conquistar o Mundial na África do Sul roubou, em direto e ao vivo, um apaixonadíssimo beijo a Sara Carbonero. Nessa altura, toda a gente achou, no mínimo, desculpável, até porque Carbonero era a namorada do guarda-redes espanhol. Entende-se, mas, naquele momento, Carbonero era uma jornalista a procurar cumprir a sua missão de entrevistadora e o incidente tornou-a profissionalmente vulnerável.

Ninguém pode ter a certeza do verdadeiro sentimento de Rubiales quando beijou Jenni. Pode ter sido, apenas, um gesto soviético à moda de Brejnev, pode ter sido um traiçoeiro atentado à dignidade da atleta e pode ter sido, apenas, como ele garante, um excesso de entusiasmo. Mas nada pode justificar e desculpar o ato do mesmo Rubiales que, na tribuna de honra, para comemorar o título espanhol de campeão do mundo feminino de futebol, achou que o seu melhor contributo seria o de agarrar os genitais com ambas as mãos e assim se exibir às câmaras de televisão. E esse gesto obsceno torna o beijo definitivamente sujo.


DENTRO DA ÁREA
Uma estrelinha que não ilumina

Decorre um Mundial de atletismo, em Budapeste, mas, por enquanto, o atletismo português quase não correu, não saltou e não lançou. Há, bem sei, uma justificadíssima esperança em Auriol Dongmo. Na ausência de Pichardo (triplo salto) pode ser ela (lançamento do peso) a única estrelinha portuguesa a brilhar neste Mundial. Porém, nem uma campeã do mundo pode legitimar a ausência de preocupação, não apenas com o atletismo, mas com o estado geral do desporto português. O futebol é uma floresta que tudo esconde.


FORA DA ÁREA
A traição não tem perdão

Interessante analisar os títulos dos jornais internacionais sobre a morte de Prigozhin, o líder do grupo Wagner. Há títulos que apenas revelam o facto evidente: o avião caiu. Outros, que são mais atrevidos: o avião explodiu. E ainda outros que deixam entender a intervenção direta das forças armadas russas e do comprometimento de Putin na ação. Os Estados Unidos admitem, pela voz do presidente Biden, que, na Rússia, Putin nunca é alheio a nada. Porém, a indicação mais clarividente veio do próprio Putin. Disse ele: «Não perdoo a traição!»