Filosofia do Desporto

A Filosofia nem sempre disse a mesma coisa,mas fala sempre da mesma coisa: da realidade e do conhecimento que dela podemos ter

NO passdo dia 30 de Março, numa cerimónia realizada no salão nobre da reitoria da Universidade do Porto, foi aprovada e assinada a Carta Inaugural da designada Associação de Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa, (AFDLP). Como propósito central dos seus promotores, cito, queremos juntos Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Guiné Equatorial, Macau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe além de todos aqueles que, por suas razões, desejarem «pensar o desporto em língua portuguesa». 

Nossa proposta é a de reunir pensamentos e pensadores em torno da Filosofia do Desporto, formando uma Associação capaz de promover encontros, debates, produções de materiais em língua portuguesa a serem divulgados e socializados. 

Perguntarão alguns leitores: mas porquê uma Associação da Filosofia do Desporto? Por duas razões. Porque são imensos os exemplos a nível mundial das mais diversas associações deste tipo; mas, principalmente, porque a Filosofia teve ao longo da história da humanidade manifestas expressões de interesse em aprofundar a complexidade da realidade desportiva.
 

COMO exemplo, o famoso filósofo Ortega Gasset ao, durante décadas, ter elaborado textos que aludem ao desporto e, sobretudo, ao caráter desportivo de certas formas de viver. O interesse de Ortega pelo desporto assentou em, por um lado, tomar o desporto como uma das tendências do seu tempo; por outro lado, encontrou no universo desportivo um conjunto de imagens que lhe permitiram caracterizar, por analogia, a vida humana e a Filosofia enquanto maneira peculiar de viver. (Amoedo, M.A., o significado filosófico do esforço desportivo em José Ortega y Gasset). É de sua autoria a seguinte afirmação «o destino de cada homem é ao mesmo tempo o seu maior prazer. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação e da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade.» (O que é a Filosofia?, Edições Cotovia).

Mas não só! Veja-se também a verdadeira cruzada empreendida em Portugal durante dezenas de anos por Manuel Sérgio ao longo da sua extensa obra filosófica sobre o Desporto. Cito, a Filosofia, no quadro dos saberes universitários, tem a seguinte e nobre missão: fundamentar, inter-relacionar e complementar. 

No meu modesto entender, fundamentar, inter-relacionar e complementar todas as formas de conhecimento, mormente o conhecimento científico. Inter-relacionando o Desporto e a Filosofia, nomeadamente que o Desporto ensina à Filosofia que a transcendência é o sentido da vida. (Manuel Sérgio, O Desporto como ciência e como filosofia). 
 

MUITOS outros filósofos também assim procederam, manifestando afinal o entendimento que o desporto contribui para o transportar para a vida o conceito de transcendência.
Fernando Savater disse-nos que toda a filosofia obriga a olhar as coisas como que de um ponto elevado, para que o olhar possa abarcar o essencial - do passado ao presente, apontando talvez algum dealbar do futuro. (O Valor de Educar, Edições Dom Quixote).

Merleau-Ponty pelo deslumbramento que soube provocar-nos quando nos alerta através da sua filosofia do sensível para a nossa experiência diária contida em o encantamento de ver e sentir, a cegueira da visão, o acariciar com os olhos, o fazer ver e sentir com palavras e o ver com as mãos.
 

T AMBÉM Anthony Kenny, através da sua Nova História da Filsofia Ocidental e Jean François Pradeau em E História da Filosofia. Tal como Remo Bodei, professor de História da Filosofia na Universidade de Pisa e professor visitante de algumas Universidades americanas. 

Manuel Sérgio, dirigiu-me num determinado momento as seguintes palavras: 

«Tal como nos disse Kant, a filosofia não se aprende, só pode aprender-se a filosofar. A filosofia é também uma teoria crítica dos princípios, dos métodos e das conclusões das diversas ciências.» 

Com isto quero dizer que ninguém melhor que um treinador desportivo se encontra em condições de filosofar sobre o desporto. A filosofia do desporto é consubstancial à prática científica do desporto. Isto significa que a filosofia é sobretudo uma atitude, um modo permanente de pensar, um pensamento instituinte que não cessa de questionar o saber instituído. A filosofia não é a verdade, mas a procura insaciável da verdade.

Anthony Kenny em Filosofia Antiga da Nova História da Filosofia Ocidental disse-nos: «A palavra filosofia significa coisas diferentes para pessoas diferentes. A filosofia pode ser vista como uma arte ou uma ciência, assemelhando-se a ambas. Parece uma ciência no sentido em que o filósofo busca a verdade.» 

Por outro lado, nas artes as obras clássicas são imorredoiras tal como acontece na filosofia, que essencialmente assenta na obra de gênios individuais, onde Kant não derruba Platão e Shakespeare não derruba Homero.

Há verdade nestas duas descrições, mas nenhuma delas é completamente verdadeira e nenhuma contém toda a verdade. A filosofia não é uma ciência e não há um grau cimeiro no seu desenvolvimento. 
 

Afilosofia não é uma questão de conhecimento em expansão, de aquisição de novas verdades acerca do mundo, o filósofo não possui informação negada aos outros. A filosofia não é uma questão de conhecimento, é uma questão de compreensão, ou seja, de organização do que se conhece. O que a filosofia oferece não é conhecimento, é compreensão.

Na História da Filosofia coordenada por Jean Francois Pradeau, professor de Filosofia da Universidade de Lyon, França, pode ler-se que, a Filosofia nem sempre disse a mesma coisa, é certo, mas fala sempre da mesma coisa: da realidade e do conhecimento que dela podemos ter; do sentido da nossa existência e da maneira como a podemos conduzir. 

Remo Bodei, filósofo italiano, afirma no seu livro A Filosofia no Século XX (Edições 70, 1997):  

«A Filosofia e a sua verdade são guardiões de uma vida mais intensa. A prática da Filosofia permite à consciência individual constituir-se numa unidade dinâmica, reunir-se de novo consigo mesma, agir livremente, tomar posse de si.» 

O nosso Eu tem necessidade de se recompor, de continuamente se reestruturar e de, ao mesmo tempo, conservar a própria identidade e integridade. Necessitamos ir mais além que falar em vez de pensar, de sermos agidos em vez de agirmos, de vivermos mais para o mundo exterior do que para nós. Oscilando entre processos de socialização e personalização, cada um de nós tem agora a oportunidade de se realizar, de dar sentido à própria vida.

Por vezes só vemos aquilo que queremos ver e não tanto aquilo que verdadeiramente interessa. A individualidade, remetida à sua solidão, redescobre a sua complexidade e as amplas margens de incompatibilidade e não absorção no conjunto social.  
 

CONTRARIAMENTE a tudo o que se poderia pensar, o peso da subjetividade não diminuiu neste mundo ferreamente estruturado pela razão formal, pela ciência, pela burocracia, cresce paralelamente a ele. Cada um de nós deve escolher os caminhos que pretende seguir ao longo da sua vida. Convertendo o passado em conhecimento, compreendendo tudo o que obscuramente se agita em nós e no mundo, estando dispostos a realizar-nos, a tornarmo-nos criadores da nossa própria história. Por isso a filosofia deve ser efetivo conhecimento do universal concreto e não colheita de abstrações úteis e de rótulos. 

Vivemos uma época em que se verifica uma tenaz, embora inconsciente, resistência a assumir obrigações morais de longa duração. E, por isso, por detrás dos fundamentalismos religiosos e dos nacionalismos recentes, se insinua de algum modo uma renovada e inequívoca necessidade de enraizamento.O que permite concluir que a identidade individual procede sempre da identidade coletiva e é justamente impensável sem ela. Cumpre assim à filosofia criar para cada um de nós uma obrigação vinculatória e iniludível de cada vez maior responsabilidade e reflexão. 
 

TERMINO concluindo que, naturalmente, aconteceu comigo o que é comum a todos os seres humanos. Pais, amigos, professores, colegas, meios de comunicação social incutiram-me uma determinada forma de pensar e agir. E através de mensagens diretas ou indiretas, por via da imitação e do medo gradual que me foram instalando no sentido de não arriscar fazer diferente, fui assim adquirindo determinados valores e crenças (naturalmente, umas mais positivas que outras).
 
E só quando gradualmente comecei a adquirir a capacidade de questionar esses hábitos e repensar filosoficamente a sua utilidade e adaptabilidade, fiquei verdadeiramente em condições para um desempenho onde fosse visível uma Filosofia própria de intervenção (que viria a designar como Pensar e Intervir como um Treinador). 

Afinal, uma Filosofia do Desporto tal como a Associação de Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa pretende vir a defender.