Paulo Bento: «Portugal não depende tanto de Ronaldo como dependia há uns anos»
Como jogador e treinador, Paulo Bento leva quase 40 anos dedicados ao futebol. Depois de deixar a seleção dos Emirados Árabes Unidos, está agora sem equipa, mas uma memória bem viva dos momentos mais marcantes da carreira que começou no E. Amadora, passou por V. Guimarães, Benfica, Oviedo ou Sporting e, claro, pela Seleção Nacional, tanto como jogador como selecionador. Brasil, China e Coreia do Sul foram outros portos da sua viagem.
Viagem essa que começou então pela mão de João Alves. Paulo Bento recordou a sua importância no videocast 90+3, que pode ver nas plataformas de A BOLA.
A importância de João Alves e o amigo-irmão
«Há pessoas realmente muito importantes na minha vida desportiva e pessoal, e o João Alves é uma delas, mas há mais gente que me ajudou muitíssimo. Creio que tem a ver com as oportunidades que a vida nos dá e com um fator decisivo, que é a sorte. A ida para o Estrela foi um momento de sorte que mudou a minha vida. Seria certamente uma vida completamente diferente. Num determinado momento da minha adolescência, cometi erros que não aconselho ninguém a cometer — como deixar de estudar aos 17 anos para me dedicar ao futebol num clube de bairro, o que poderia ter tido consequências graves. Fui trabalhar com os meus pais [no restaurante da família], mas, aos 20 anos, tornar-me profissional mudou tudo. Se não houvesse essa oportunidade — de um senhor me ver durante 20 ou 26 minutos e dizer ‘para mim é suficiente, vamos contratar aquele miúdo’ —, provavelmente teria ficado pela distrital ou terceira divisão. Hoje em dia esse cenário é quase impossível, pois os miúdos são captados muito cedo. Fui treinar à experiência, fiz uns 20 minutos num treino, ele mandou-me sair e, quando eu pensava que me vinha embora, disseram-me que me iam oferecer um contrato de três anos», recorda.
Depois segue-se o Vitória de Guimarães, novamente pela mão de João Alves e outra relação pessoal muito forte: «Lá construí uma amizade que dura até hoje com o Pedro Barbosa. É alguém com quem, além da amizade, tenho uma confiança tremenda. Costumo dizer: não tenho irmãos, sou filho único, mas quase que o vejo como tal. Depois voltámos a coincidir algumas vezes na Seleção Nacional e no Mundial. E, essencialmente, coincidimos quatro anos no Sporting.»
Não tenho irmãos, sou filho único, mas quase que vejo o Pedro Barbosa como tal. É alguém com quem, além da amizade, tenho uma confiança tremenda
Aquela tarde do very-light...
Juntos passaram por um dos momentos mais difíceis do futebol português, a final da Taça com o Benfica em que morreu um adepto do Sporting atingido por um very light. «É algo que, felizmente, não voltou a acontecer num jogo destas características, nunca deveria ter existido. Lembro-me de ver um clarão na bancada atrás da baliza, mas só ao intervalo é que tivemos a noção do que se passava. Decidiu-se continuar o jogo, mas não houve entrega da Taça e não devia ter havido festejo nenhum. Não há nada mais importante do que uma vida. Ganhámos o troféu, tentámos ser profissionais, mas sempre que nos lembrarmos desse jogo, vamos lembrar-nos que se perdeu uma vida, um pai, um filho. O futebol não faz sentido assim.»
É já no Oviedo que joga o Euro 2000, por muitos Seleção apelidada de ‘Geração de Ouro’, que chegou às meias-finais, onde foi eliminada pela França. Em retrospectiva, Paulo Bento não consegue o distanciamento suficiente para o apontar, mas reconhece a qualidade que estava presente.
«É difícil rotularmos as equipas onde estamos como ‘a melhor’. Se falarmos de qualidade em quantidade, provavelmente a geração de hoje será a melhor. Mas essa seleção de 2000 foi das melhores equipas em que joguei, a par do Sporting campeão de 2001/2002. Tinha jogadores de muito talento e, acima de tudo, de grande maturidade, fruto de experiências em ligas competitivas como a italiana, espanhola ou alemã (Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, Couto). Era uma grande seleção, sem dúvida. O problema foi termos apanhado outra grande seleção do outro lado, a França, numa final antecipada que acabaram por ganhar», lembra, algo que se perdeu depois no Mundial 2002, na Coreia, em que Portugal veio para casa após a fase de grupos. Ficou célebre a sua frase 'pau que nasce torto, tarde ou nunca se endireita': «Acho que resume o que foi esse Mundial. Não correu bem, desde a preparação até às condições em Macau.»
Segue-se o Sporting, onde ganha o Campeonato, Taça e Supertaça. Foi o auge? Paulo Bento não hesita: «Sim. O Sporting vinha do título de 1999/2000. No meu primeiro ano, 2000/2001, perdemos o campeonato para o Boavista. Mas em 2001/2002 fizemos uma grande temporada, estivemos 25 jogos sem perder. Era uma equipa de enorme qualidade. O Jardel era a peça que faltava – um finalizador incrível que obrigava a equipa a jogar de certa forma. Mas também havia o Niculae, que era um monstro de trabalho antes de se lesionar, o João Pinto, o Pedro Barbosa, e jovens como o Hugo Viana e o Quaresma a aparecer.»
Em Outubro de 2005, assume a equipa principal depois de ter começado nos juniores: «Não senti receio, senti responsabilidade. A preparação para ser treinador começou em Espanha, a pensar o jogo de outra forma. Quando surgiu a oportunidade dos juniores, aceitei porque era o clube que me tinha tratado de forma extraordinária e que tinha uma cultura de formação ímpar. Fomos campeões de juniores, algo que o clube já não conseguia há alguns anos. Quando o Peseiro saiu, assumi a equipa com a noção de que era um passo grande. Gerir o balneário com ex-colegas não foi desrespeitoso; foi uma questão de clareza sobre as novas funções, mantendo o respeito.»
Foram quatro anos com quatro taças... «Fica o sabor amargo de não ter conseguido o campeonato. Em 2005/06, recuperámos muitos pontos e podíamos ter passado para a frente no jogo com o FC Porto em Alvalade (o golo do Jorginho). Em 2006/07 perdemos por um ponto (o golo com a mão do Ronny). Fico orgulhoso de ter contribuído para o crescimento de jogadores como João Moutinho, Nani, Rui Patrício, Veloso, Adrien, entre outros», recorda.
«João Moutinho vai dar treinador... se quiser»
João Moutinho foi o jogador que mais o marcou? «Foi um privilégio treiná-lo. Por tudo: pela dedicação, treino, disponibilidade. Mas, acima de tudo, pela inteligência e qualidade. O João antecipava todos os cenários, todos. O João tem um talento que não é o drible, é a intuição: antecipar cenários ofensivos e defensivos, a reação à perda, a leitura do jogo para avaliar o que o adversário vai fazer. Treinei-o 6 meses nos juniores e já se via, depois na equipa principal do Sporting e 4 anos e na Seleção.» E vai dar treinador? «Se quiser, sim. Creio que terá vontade de o fazer, enquanto puder jogar, que jogue... e ainda joga muito.»
Foi um privilégio treinar o João Moutinho. Por tudo: pela dedicação, treino, disponibilidade. Mas, acima de tudo, pela inteligência e qualidade. O João antecipava todos os cenários, todos. O João tem um talento que não é o drible, é a intuição: antecipar cenários ofensivos e defensivos, a reação à perda, a leitura do jogo para avaliar o que o adversário vai fazer
«Lucílio Batista? Foi tão mau... nunca mais falei com ele»
Perdoou Lucílio Baptista pela Taça da Liga perdida em 2009 contra o Benfica? [Aos 73 minutos, o árbitro assinalou um penálti para o Benfica por suposta mão na bola de Pedro Silva na área do Sporting, e expulsou o lateral brasileiro por acumulação de amarelos; o Benfica viria a empatar e ganhar o jogo no desempate por penáltis].
«Nunca mais falei com ele. Creio que foi algo tão mau que não faz sentido nenhum. É daquelas coisas que não se conseguem entender, por mais justificações que nos dêem. [Ficou célebre o seu gesto com a mão no banco.] Ficou, era o meu sentimento naquela altura, continua a ser o mesmo e já passaram bastantes anos. Foi em 2009, mas continua a ser o mesmo sentimento. Não lhe encontro justificação nenhuma. E nem está apenas em causa o troféu que estava em disputa, está em causa a forma como tudo aconteceu. E não foi apenas um penálti mal assinalado — isso é pouco: é que não foi mão, não foi dentro da área e foi assinalado não pelo fiscal de linha que estava junto ao lance, mas sim pelo fiscal de linha do lado contrário, que não viu nada. E estava lá também o quarto árbitro, que nada viu. Felizmente, também já se retirou. Graças a Deus», insiste.
E como era treinar o Cristiano no auge da sua carreira? O coletivo não era tão forte. «Havia uma maior dependência dele, não há como esconder. Portugal hoje não depende tanto dele como dependia há uns anos. E posso falar de 2010, 2012, 2014… em 2016 já menos, até porque acabámos por ganhar a final do Europeu, embora com a infelicidade de ele estar lesionado. Estamos a falar de que, devido às opções que existem hoje, há menos dependência, e também fruto da idade dele — embora continue a fazer golos na Arábia. Creio que é claro para toda a gente, pelo menos para mim, que a dependência hoje é completamente diferente do que era há uns anos. Além disso, a posição em que joga mudou, hoje joga numa posição mais central; naquela altura jogava como extremo, embora diferente do Nani, ou do Vieirinha, ou do Varela. Tínhamos, por isso, de arranjar estratégias — essencialmente do ponto de vista defensivo — para que ele se desgastasse menos. Tentávamos libertá-lo de algumas tarefas para que estivesse mais disponível para transitar em determinados momentos ofensivos. E tínhamos mecanismos na nossa forma de defender para o proteger a ele e, ao mesmo tempo, o lateral que jogava do lado dele, porque ele não baixava tanto. Era necessário criar essa dinâmica defensiva», recorda.
O Mundial 2014 foi depois disputado com muitas lesões, incluindo Cristiano Ronaldo, que jogou com uma lesão no joelho, e dois guarda-redes, o que obrigou a usar os três que foram ao Brasil. Portugal foi eliminado na fase de grupos e Paulo Bento não quis usar a questão como desculpa, citando outros fatores: «A questão dos três guarda-redes foi assim: o Rui raramente se lesiona e lesionou-se no jogo com a Alemanha (0-4), quando já não podíamos fazer substituições. Depois o Beto lesionou-se no último jogo, com o Gana (2-1, já depois do 2-2 com os EUA). Tínhamos alguns jogadores que eram propensos a lesões; durante a época tinham tido problemas e poderia voltar a acontecer. E isso acabou por ser difícil de gerir numa competição curta, onde não se pode correr grandes riscos. E, obviamente, tínhamos jogadores com pouco tempo de jogo, mas por exemplo o Nani, que não tinha muito tempo de jogo, acabou por ser um dos melhores jogadores no Mundial. De resto, não tivemos outros problemas significativos. Diria que, apesar de ser um fator difícil de gerir, não foi o fator principal para não alcançarmos o nosso objetivo, que era passar a fase de grupos. Acho que um dos fatores mais determinantes foi termos começado a preocupar-nos com mais coisas do que aquelas com que devíamos: treinar, jogar e fazer o máximo. Começámos a pensar em outras coisas, e isso tira-te o foco. Falo no geral, mas começámos a pensar no acessório em vez do essencial, no futuro em vez do presente. Normalmente isso não dá bom resultado — e creio que foi o que aconteceu. Se tivéssemos mantido o foco e a responsabilidade — que o treinador tem sempre de tentar garantir — teríamos conseguido. E, se assim fosse, contra o Gana teríamos feito mais golos, os suficientes para nos qualificarmos.»
E o que lhe falta fazer no futebol? «O que quero é continuar a ser feliz com o que faço e manter-me motivado. Trabalhar com jogadores, preparar estratégias... No dia em que não sentir isso, vou reformar-me. Por enquanto, quero continuar.»