Os protagonistas e as histórias do primeiro Mundial africano
O Campeonato do Mundo de 2025 ficará para sempre gravado na história do ciclismo. Não apenas por ser o primeiro disputado em solo africano, pelos quase 270 quilómetros de martírio sob um sol impiedoso, ou o percurso em sobe a desce pelas ruas de Kigali, que esmagou pela multidão em festa.
Este Mundial foi, acima de tudo, uma celebração de coragem, dor e sonhos - com o génio de Tadej Pogacar a iluminar tudo à sua volta, mas com histórias que gritam por memória, de todos os cantos do planeta. O esloveno ergueu os braços e reconquistou a camisola mais desejada, mas todos, do primeiro ao último (e foram apenas 30 a concluir a prova), merecem aplausos. Kigali foi um arco-íris num desporto em estado puro.
Pogacar... irreparável
Tadej Pogacar já não precisa de provar nada a ninguém. Campeão do mundo em 2024, conquistador de Tours, monumentos, outras clássicas e... corações, o esloveno chegou a Kigali para reescrever mais uma página da sua lenda. E fê-lo com mestria quase cruel: atacou a mais de 100 quilómetros da meta, sobre as rampas do temido Monte Kigali, e seguiu em solitário como se fugisse ao tempo. A cada curva, a cada subida, o público ruandês gritava o seu nome.
«Creio que o percurso foi desenhado para ataques longos, mas não esperava ficar sozinho tão cedo,» confessou Pogacar, esboçando um sorriso cansado. «Quando vi que o Juan [Ayuso] e o Del Toro não aguentavam, percebi que era eu contra tudo. Como em 2024...»
A imagem do campeão, a lutar contra o calor e ele próprio, foi de cortar a respiração, mas empolgante. «Cada subida doía mais. E nas descidas também. Já quase não tinha forças. Nas últimas rampas, duvidei… mas continuei.»
E no fim, novamente com o mundo a seus pés, a camisola arco-íris no corpo e o ouro ao peito, deixou palavras que tocam a eternidade: «Ganhar em África, neste percurso brutal, com menos de 30 homens a terminar… torna tudo ainda mais especial. Já estou ansioso pelos Mundiais de Montreal 2027!»
Evenepoel 'avariado'
Remco Evenepoel parecia pronto para fazer história: uma semana depois de derrotar Pogacar no contrarrelógio, sonhava com a dobradinha. E durante largos quilómetros, parecia ter pernas para essa façanha. Mas o destino - ou talvez os muros de Kigali - trocou-lhe as voltas. «Senti-me capaz de tirar a vitória ao Tadej», lamentou o belga. «Mas é ciclismo: tudo tem de estar perfeito. E não estava.»
O momento-chave foi quase cruel. «Pouco antes do Mont Kigali, bati num buraco e o selim baixou. De repente, as pernas começaram a bloquear. Tentei seguir o Pogacar, consegui aguentar trinta segundos… depois foi agonia.» E como se não bastasse, a substituição de bicicletas não correu melhor: «A segunda bicicleta tinha o selim mal regulado. A lombar começou a doer-me. Tive de mudar outra vez, mas o carro não chegava, e sem rádio, ninguém me ouvia.» Mesmo assim, terminou com prata ao peito e orgulho no olhar. «Saio de cabeça erguida. Mas sim… doeu.»
Healy e a loucura do bronze
Ben Healy nunca foi nome garantido num pódio mundial, mas talvez esteja na altura de o ser. O irlandês pedalou para um magnífico terceiro lugar, atrás de dois monstros, e depois de se livrar do dinamarquês Mattias Skjelmose, e a emoção transbordava-lhe nas palavras: «Estar no pódio com Remco e Tadej… é de loucos! Trabalhei tanto para isto. O percurso era perfeito: calor, subidas... sofrimento puro. E adorei cada momento.» Healy, de 25 anos, que brilhou no Tour e na Bastogne-Liège, já é figura do pelotão mundial.
Ayuso esbarra no empedrado
Juan Ayuso parecia ter asas quando seguiu Pogacar no ataque no Monte Kigali, e com o esloveno e Del Toro enfrentou o pavé do temível Muro de Kigali. Mas na rampa íngreme de empedrado irregular, o sonho escorregou-lhe por entre os dedos.
«Estava a sentir-me bem. Até que veio aquela subida de pedras e... puff. Desliguei», contou o espanhol. O catalão ainda tentou reentrar na compita, mas quando os lugares de pódio se decidiram, já estava mal posicionado. «Claro que dói. Acho que podia ter estado ali, na luta. Mas dei tudo. E estou satisfeito por isso.» Aos 23 anos, com uma mudança anunciada para a Lidl-Trek, Ayuso é o rosto da esperança espanhola no ciclismo.
Del Toro: indisposição-Pogacar
O mexicano Isaac del Toro é um fenómeno em crescimento. Aos 21 anos, brilhou no Giro, sonhou em Kigali. E durante breves minutos formou com Pogacar e Ayuso um trio mágico da UAE Emirates. Mas o corpo tinha outras ideias. «Ainda não tenho o nível para uma corrida de 260 km com esta competitividade. Comecei a ter dores de estômago quando estava com Pogacar, tive de ceder, melhorei, mas última volta voltou».
Mesmo assim, terminou em 7.º e orgulhoso: «Há muito tempo o México não tinha um desempenho assim num Mundial. Sinto que abri um caminho.» E sobre Pogacar, de quem é companheiro na equipa, foi claro: «Disse-me para continuar a trabalhar, passo a passo. Sei que será muito difícil alcançar o seu nível, mas é isso que me move.»