O inferno são os outros
Os Titãs, grupo brasileiro de rock fundado em 1982, tem uma canção intitulada O inferno são os outros, inspirada, presume-se, numa frase igual de Jean-Paul Sartre, filósofo francês. Estas quatro palavras juntas significam aquilo que a maioria das pessoas pensa sobre o que faz, o que não faz, o que pensa fazer e o que não pensa fazer: tudo é culpa do outro, nunca do próprio. É mais ou menos aquilo que ouvi, nos já bem longínquos tempos em que cumpri o serviço militar obrigatório, de um pai e de uma mãe que assistiam a um desfile militar: «Olha, já viste o nosso filho ali a marchar tão corretamente; é, aliás, o único que está com o passo certo; os outros todos estão totalmente desalinhados com o passo dele».
Esta memória com cerca de 30 anos ressurgiu-me, levemente, quando ouvi as declarações de Roger Schmidt após o empate com o Casa Pia, tal como recordo a tremenda dificuldade que a maioria dos treinadores tem para assumir que, sim senhor, errou. Ou de muitos jogadores que preferem falar do tufo de relva que apareceu junto ao piton e que impediu que o remate saísse certeiro. Ou que, mea culpa, mea tão grande culpa, que um jornalista assuma que escreveu algo que não deveria ter escrito. É, no fundo, algo intrínseco à condição humana: a culpa não é minha, é tua, é dele, é vossa. Minha é que nunca. O inferno nunca sou eu, pela simples razão de que o inferno são sempre os outros.
José Mourinho deve ser seguidor absoluto da música dos Titãs e da frase de Jean-Paul Sartre: o inferno são mesmo os outros. Os árbitros, os auxiliares, o VAR, o AVAR, os dirigentes da Serie A, Premier League e La Liga, bem como muitos dos treinadores com quem se cruzou ao longo de mais de 20 anos de brilhantíssima carreira. Terá ele razão? Sim, algumas vezes tem, já que o inferno, em alguns jogos, são mesmo os outros. Porém, como época após época, em Portugal, Inglaterra, Itália, Espanha, de novo em Inglaterra, de novo em Itália, no Benfica, Leiria, FC Porto, Chelsea, Inter, Real Madrid, de novo no Chelsea, Manchester United, Tottenham e agora na Roma, o inferno continuam a ser os outros, duas hipóteses, quanto a mim, se colocam. Ou o setubalense tem a mania de perseguição e vê perseguição em grande parte das coisas que não o satisfazem (o que é possível) ou (o que também é possível) centra-se nele uma das maiores cabalas do futebol mundial.
Há, porém, uma terceira hipótese. A que nega a primeira e a segunda._José Mourinho pode não acreditar em tudo o que diz, pode não haver qualquer cabala organizada contra ele, antes (apenas e só) um discurso que, mesmo podendo por vezes parecer absurdo, existe para defender, a ferro e fogo, o chamado grupo de trabalho. É possível que assim seja e, se o for, até faz sentido. Posso não acreditar que o inferno são os outros, posso até saber ou desconfiar que o inferno sou eu, os meus ou um dos meus, mas atribuo a culpa aos outros para que, desse modo, possa desviar o foco do que vai mal em mim ou nos meus. Todos nós, uns mais, outros menos, já o fizemos. Talvez eu próprio, neste texto, esteja a passar a ideia de que o inferno são os outros por não conseguir admitir que, por vezes, o inferno sou eu ou os meus. Todos podemos achar que estamos a marchar bem e os outros 20 ou 30 é que estão a fazê-lo mal. Será assim?