Carlos Nicolía deixou o Benfica ao fim de 10 épocas - Foto: IMAGO

Messi, Ronaldo e os grandes do ténis: a visão crítica de Carlos Nicolía

Numa semana carregada de simbolismo desportivo, o Monumental de Núñez vestiu-se a rigor para homenagear Lionel Messi, naquele que poderá ter sido o último jogo em casa com a camisola da seleção argentina. O avançado não desiludiu, marcou dois golos no triunfo por 3-0 frente à Venezuela. A emoção tomou conta do craque desde cedo. No aquecimento já se percebia o peso do momento, e o impacto foi ainda maior quando entrou em campo de mãos dadas com os filhos, pouco antes de ouvir o hino nacional. Algumas lágrimas escaparam-lhe nesse instante, envolto numa atmosfera impressionante, quase de culto, em torno do eterno camisola 10. Das bancadas, onde milhares de bandeiras celestes e brancas tremulavam, ergueram-se cânticos incessantes que o acompanharam durante toda a noite. Faixas com mensagens de gratidão cobriam o estádio, transformado num autêntico altar de devoção. Já dentro das quatro linhas, colegas e adversários não ficaram indiferentes: houve abraços sentidos, palavras de respeito e até uma espécie de guarda de honra improvisada que reforçou a dimensão única do momento. Ao mesmo tempo, Novak Djokovic, aos 38 anos, voltou a provar a sua longevidade competitiva ao chegar às meias-finais do US Open. Cristiano Ronaldo, por sua vez, continua a desafiar o tempo e ontem somou mais uma internacionalização e dois golos por Portugal frente à Arménia. Foi neste cruzamento de símbolos do desporto mundial que conversei com Carlos Nicolía. O antigo internacional argentino, campeão do mundo em hóquei em patins e campeão nacional pelo Benfica, partilhou comigo uma visão crítica que vai muito para além da sua modalidade.

Por vezes, o desporto ultrapassa as linhas do campo, os troféus e as medalhas, transformando-se numa verdadeira lição de vida. Carlos Nicolía é disso um exemplo maior. Aos 39 anos, o ex-hoquista argentino, campeão do mundo pela seleção albiceleste e campeão nacional em Portugal pelo Benfica, é muito mais do que o registo impressionante de títulos. É um homem que escolheu Portugal como casa e que se recusa a render-se ao hóquei atual — uma modalidade que, no seu olhar, perdeu demasiados dos valores essenciais que a tornaram única.

Crescer em San Juan, na Argentina, tem destas coisas: basta um detalhe para acender a chama. Um vizinho a sair de casa todos os dias com stick e patins foi suficiente para despertar a curiosidade. Mãe, o que é aquilo?, perguntou. Na semana seguinte, já treinava no Olimpia, clube situado a apenas 150 metros de casa. Tinha quatro anos. Nunca mais parou.

Nicolía cresceu rodeado por uma família que lhe incutiu princípios sólidos. O pai, médico e apaixonado por futebol, transmitiu-lhe disciplina e rigor; a mãe, socióloga, ensinou-lhe que o valor de uma pessoa está muito para além das conquistas. Desde cedo, carregou uma frase que nunca mais o largou: Podes ser bom jogador, mas se fores má pessoa, isso não vale nada. Com o stick na mão e patins nos pés, construiu um caminho imparável, numa modalidade que exige entrega total e paixão sem limites.

A carreira invejável, recheada de títulos nacionais e internacionais, é apenas a superfície da sua história. Nicolía nunca se limitou a ganhar. Sempre quis expor as feridas do desporto moderno: a guerra fria de egos nos balneários, a violência verbal sem travões, a perda gradual dos valores que deram alma ao hóquei. Ele próprio sofreu ataques cruéis, com insultos dirigidos à memória da sua mulher falecida e até ao filho. Essa dor, carregada com dignidade, revela um problema maior: a desumanização dos adeptos e a erosão do respeito no desporto.

Em Portugal, encontrou mais do que um clube histórico como o Benfica. Encontrou estabilidade, mas não deixa, porém, de olhar criticamente para o país natal: Na Argentina, vi sempre quem está no poder a crescer, mas nunca vi crescer a modalidade. A frase resume a desilusão perante uma realidade que parece não evoluir.

A sua visão é clara: o hóquei precisa de resgatar valores, transparência e uma estrutura que sustente o futuro. Entre a seriedade e a ironia, Nicolía não resiste à provocação: Se fosse dirigente, comprava um ringue de boxe para os jogadores resolverem as coisas cara a cara, com coragem e honestidade. A piada contém uma verdade profunda — falta coragem e liderança para enfrentar a crise ética que atravessa o desporto.

Nicolía vai mais longe. Para ele, um dos grandes males do desporto atual é a perda de valores formativos em detrimento da política e do poder. A transmissão de ética deveria funcionar como uma pirâmide: do dirigente para o diretor desportivo, do diretor para o treinador, do treinador para os jogadores.

O contraste com o presente é evidente para o argentino: clubes e federações privilegiam hoje a lógica política em detrimento da desportiva. Nicolía recorda o que viveu em 2004, quando chegou à Europa e assistiu ao nascimento de um projeto em Espanha: havia política, sim, mas executada por gente capacitada desportivamente. A política dava o sustento para criar projetos, diz. Hoje, pelo contrário, a política entra dentro dos projetos e decide quem são treinadores, jogadores e dirigentes. Quando a política entra no desporto, deixa de ser desporto e passa a ser apenas política.

O problema, sublinha, é que muitos dirigentes de hoje não têm preparação desportiva. São figuras políticas ou mediáticas, mas sem a formação de base que outrora era comum. Recorda o exemplo de Toni Nadal, tio e treinador de Rafael Nadal, que transmitiu valores de sacrifício e disciplina. Ou ainda Messi, que encontrou no Barcelona uma estrutura sólida, centrada na ética e na formação. Cristiano Ronaldo, talvez exceção à regra, além da formação que recebeu no Sporting, construiu sozinho essa cultura de exigência, influenciando tudo e todos à sua volta.

O olhar de Nicolía vai para além do hóquei. No futebol, sublinha o contraste entre dois gigantes: Lionel Messi e Cristiano Ronaldo. Para ele, Messi encarna a genialidade silenciosa, quase tímida, que deslumbra sem precisar de se afirmar. Já Cristiano representa a confiança extrema, a ambição assumida sem pudor, a “arrogância” transformada em arma, sustentada por um trabalho diário implacável. Dois estilos diferentes, dois caminhos distintos, ambos igualmente válidos para chegar ao topo.

No ténis, encontra outro espelho de grandeza. Hoje são Alcaraz e Sinner a assumir o protagonismo. Ontem foram Nadal, Federer e Djokovic a marcar uma era irrepetível. Admira a resiliência quase sobre-humana que Nadal sempre manifestou no court, a elegância intemporal de Federer e a determinação indomável de Djokovic. Três virtudes que, somadas, formam um ideal raro, inspirador para qualquer atleta.

E talvez esteja aí a maior lição. Messi e Ronaldo, Alcaraz, Sinner, Nadal, Federer e Djokovic provam que há muitos caminhos para a excelência, mas todos passam por acreditar e trabalhar como se não houvesse alternativa. A conclusão é simples: não há fórmula única para o sucesso. Cada campeão carrega virtudes próprias, cada modalidade acrescenta a sua dimensão, mas todos partilham a mesma capacidade de inspirar e transformar. Nicolía, com humildade e lucidez, lembra-nos que o desporto não é apenas espetáculo: é escola de vida, feita de talento, atitude, mentalidade e compromisso.

E basta olhar para os grandes campeões: Djokovic, Messi, Cristiano, Nadal ou Federer foram formados em sistemas assentes em ética, sacrifício e compromisso. Hoje, lamenta Nicolía, o fundamento mais forte do desporto é o dinheiro, a falta de paciência, o business, o poder: eu decido, tu não.

Hoje, em Portugal, Nicolía gosta de brincar dizendo que existem dois Nicolías: o desportista e a pessoa. O primeiro ficou marcado pela intensidade dentro de campo; o segundo guia agora os dias com curiosidade e vontade de aprender.

Apaixonou-se pela arquitetura e pelo imobiliário. Durante a carreira fez investimentos, mas agora dedica-se em pleno à compra, revenda e remodelação de projetos. Descobriu um universo exigente, feito de burocracia, equipas multidisciplinares e criatividade.

Tal como no desporto, acredita que o segredo está no rigor, na disciplina e na capacidade de sonhar o resultado final antes de ele existir. Reinventou-se, e prova que os valores que defende para o desporto também servem para a vida.

No fim de contas, Carlos Nicolía é mais do que títulos. É alguém que se recusa a aceitar que o desporto se resuma a dinheiro, política e poder. A sua luta nunca foi apenas contra adversários dentro de campo, mas contra uma cultura que banaliza o ódio e a violência. É contra a desumanização e pela recuperação daquilo que o desporto sempre deveria representar: valores, dignidade e esperança.

Uma lição que serve não apenas para o desporto, mas para toda a sociedade.

«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.