Rui Borges chegou ao Sporting sem fazer barulho e sem carregar o rótulo dos eleitos. Foto Miguel Nunes
Rui Borges chegou ao Sporting sem fazer barulho e sem carregar o rótulo dos eleitos. Foto Miguel Nunes

Longa vida a Rui Borges

'Verde à vista' é uma rubrica de opinião semanal da responsabilidade de Carmen Garcia, enfermeira, sportinguista e autora do blogue 'A Mãe Imperfeita'

Podia começar esta crónica com a história do Patinho Feio, contudo, existe outra que me parece mais adequada. Encontrei-a por acaso, num livro que trouxe da África do Sul para os miúdos, e reza assim: era uma vez, numa aldeia onde todos viviam da agricultura, um menino muito franzino que passava a vida agarrado aos livros e mostrava pouca capacidade física para as tarefas pesadas que a vida na aldeia exigia. O pai, preocupado, insistia com o rapaz, mas ele pouco caso lhe fazia. Na verdade, quanto mais os habitantes da aldeia comentavam com preocupação o seu futuro, mais ele persistia no seu gosto pelos livros e na forma como tinha decidido viver. Passaram anos e, a certa altura, abateu-se sobre a aldeia uma seca sem precedentes. As ribeiras secaram, os poços baixaram tanto que os baldes batiam em pedra, o gado emagreceu e a terra tornou-se pó. Por muito que os agricultores fizessem, por mais que tentassem, a aldeia definhava. E foi aí que o menino dos livros decidiu intervir. Ao conselho de anciãos falou sobre os lençóis subterrâneos e sobre as linhas de água soterradas pelo tempo de que tinha tomado conhecimento nos livros que não largava. Contou-lhes que lera sobre um método antigo, agora esquecido, para encontrar água e pediu que o deixassem tentar. Sem outras opções, e sabendo que nada tinham a perder, os anciãos concordaram e, assim, o menino caminhou por dias observando plantas e tocando o solo. Com a ajuda de um grupo de rapazes, cavou onde ninguém cavaria e, um dia, a pá encontrou lama e depois água que subiu devagar, limpa e de forma persistente. Os animais voltaram a beber, as plantas voltaram a viver e a aldeia salvou-se. Ou melhor, o menino que preocupava o pai, e pelo qual muitos «não davam nada», salvou a aldeia e tornou-se um herói.

E se na história original o nome deste menino era Lungile, na versão da história que quero transmitir o seu nome é Rui. Rui Manuel Gomes Borges, para ser mais específica. Não nascido numa aldeia da África do Sul, mas em Mirandela.

Rui Borges chegou ao Sporting sem fazer barulho e sem carregar o rótulo dos eleitos. Estava a realizar um bom trabalho no Vitória de Guimarães e a equipa leonina, em queda livre após processo de orfandade, precisava de ser revitalizada. Muitos não acreditaram no potencial do treinador, outros pagaram para ver, mas sempre com um pé atrás. «É um treinador curto», dizia-se entre dentes.

A equipa, aquando da sua chegada, tinha uma notória falta de rumo e um futebol sem fio condutor. Rui Borges assumiu um papel extraordinariamente difícil: pegar numa equipa moldada à visão de outro treinador, preencher o vazio estrutural e psicológico e voltar a colocá-la a ganhar. E a verdade, irrefutável, é que o fez muito bem. Não caiu no erro de tentar forçar a equipa a uma mutação extrema que, seguramente, traria rejeição e mais instabilidade, mas procurou manter os princípios de jogo interiorizados, respeitou as rotinas e evitou mudanças bruscas de dinâmica. E isto, senhores, é sinónimo de inteligência. Rui Borges percebeu que, naquela fase onde ainda se chorava por Rúben Amorim, não era de um novo Sporting que se precisava, mas de um Sporting que fosse funcional. Se seria mais fácil chegar imediatamente com novas ideias? Provavelmente. E talvez isso tivesse contribuído também para, aos olhos de muitos, tornar Rui Borges mais carismático. Mas Rui Borges não chegou para ser carismático — chegou para ser útil. E conseguiu fazê-lo percebendo que antes de implementar mudanças, era necessário que os jogadores, aos poucos, se desapegassem das ideias antigas.

Com o tempo, é claro, o treinador foi transformando o Sporting à sua imagem. Primeiro em pequenos pormenores quase imperceptíveis. Depois quando, soltando o modo ajustes de sobrevivência, passaram a aparecer novos padrões. Exemplos? Uma gestão mais fria do ritmo de jogo, menos riscos quando em vantagem, a posse usada para descansar com bola… Enfim, o Sporting, com a mão invisível de Rui Borges tornou-se uma equipa muito mais pragmática.

E com os ajustes, todos sabemos, vieram o bicampeonato e a dobradinha. O país vestiu-se (outra vez) de verde e branco. A euforia voltou a tomar conta dos sportinguistas. Rui Borges tinha tudo para ser colocado no Olimpo. Mas não foi. E aqui, mea culpa, eu fui uma das resistentes. Escrevi inclusivamente nesta coluna sobre as minhas dúvidas, agravadas pelos jogos de pré-época onde o nosso futebol foi para lá de sofrível. Pensava eu que se tínhamos vencido tudo, não havia que inventar. Para quê mexer num sistema comprovadamente vencedor? Quantas vezes, nos jogos de pré-época, pensei «não inventes, Rui, não inventes»?

Mas por alguma razão Rui Borges é treinador e eu sou enfermeira, certo? O que a mim me soava a alarme, Rui Borges dizia ser processo. Eu tremia com o novo sistema, com as falhas de posicionamento — os jogadores pareciam descoordenados e perdidos em campo, com as falhas de timing…

Rui Borges assumia as falhas, eu tinha vontade de roer as unhas. Mas, mais uma vez, Rui Borges mostrou o seu caráter: ignorou o ruído, continuou o seu trabalho, desvalorizou a possível perda de popularidade e tratou de preparar a equipa para o futuro.

E hoje o futuro está aí. Chegou um ano depois. O Sporting, apesar de estar cinco pontos atrás do primeiro classificado do campeonato, continua a lutar em todas as frentes. É uma equipa com soluções, consciente de si própria e, à imagem do seu treinador, dona de um pragmatismo inteligente.

A equipa, antes com uma vibração adolescente, é agora adulta, controlada e preparada para o futuro. Eu, antes receosa, sou uma adepta satisfeita. Sim, o Sporting de Rui Borges pode não estar sempre perfeito, mas a verdade é que nunca lhe falta um plano.

E mesmo fora de campo, e isto também importa (muito) referir, Rui Borges é o tipo de treinador que um clube como o Sporting deve ter. Frontal, íntegro, honesto e objectivo. Sem truques de comunicação, sem cortinas de fumo, sem procurar desviar as atenções para factores externos à equipa, sem ventriloquismo da direcção e assumindo os erros quando existem. Se tem o carisma de outros treinadores? Talvez não. E é possível que nunca venha a ter. Mas acho que, chegados a este ponto, qualquer sportinguista troca o carisma por capacidade de trabalho, ideias, maturidade e resultados.

Rui Borges é, para mim, o menino que descobriu água na aldeia. E eu era só uma das tolas que tinha dificuldade em acreditar nele. Já não sou. Estou convertida.

Longa vida a Rui Borges!