David Luiz
David Luiz - Foto: IMAGO

De Sarri a fumar-lhe para cima às mãos partidas numa 'peladinha': confissões de ex-Benfica

David Luiz voltou também a falar do ensinamento do pai que o levou a escolher as águias em vez do FC Porto

David Luiz, central do Pafos que em Portugal somou passagem pelo Benfica, concedeu uma entrevista à Gazzetta dello Sport, na qual passou em revista vários momentos da carreira, incluindo «as chuteiras compradas no mercado, a final jogada lesionado, a fé em Deus, a equipa de imigrantes em Paris e a paixão louca pela matemática».

«Nasci numa família muito modesta, os meus pais eram professores. Estudaram pedagogia e depois trabalharam numa escola. O meu pai preparava os jovens para o futuro, para o mundo do trabalho. A minha mãe trabalhava com crianças. Sempre fui um rapaz cheio de energia, gostava de estudar estatística e nunca dormia. Aos 10 anos pensava em ser professor de matemática. Depois preferi dedicar-me ao futebol. O meu pai foi futebolista e eu adormecia sempre com a bola na cama. Também fiz judo e capoeira, uma arte marcial brasileira que combina luta, dança, acrobacias e música», afirmou o defesa.

«Quando estava no São Paulo, no início jogava com umas chuteiras falsas, compradas a um vendedor ambulante. Todos os meus colegas usavam Nike ou Adidas. Numa tarde, fui com um colega de equipa ao mercado com a mãe dele e ela comprou-lhe umas chuteiras Nike novas, o último modelo. Desejava-as imenso, mas sabia que não podia pagá-las. Então disse à mãe do meu amigo 'A minha mãe também deixa se comprares para mim'. Não era verdade. No mês seguinte, ela ligou para nossa casa a pedir o dinheiro de volta, mas a minha mãe não sabia de nada. Ficou muito zangada comigo. Pensar que depois a Nike se tornou minha patrocinadora durante dez anos... Uma bela história», recordou.

«Sempre fui um número 10, até aos 16 anos. Lembro-me que, quando estava no Vitória, viajei mais de 70 horas de autocarro para jogar num torneio no Rio Grande do Sul. Partimos de Salvador. No primeiro jogo, dois defesas lesionaram-se. Eu estava no banco, levantei-me e disse 'Posso jogar na defesa'. O treinador respondeu-me 'Não, nunca jogaste nessa posição'. Ele experimentou-me no segundo jogo e correu bem, o mesmo no seguinte. Terminámos em terceiro lugar no torneio. O resultado? Fui eleito o melhor defesa. Sete meses depois assinei o meu primeiro contrato profissional, e um ano depois cheguei ao Benfica. No Chelsea joguei algumas épocas também como médio, inclusive numa final da Liga Europa», contou.

E na viagem ao passado, recordou como foi parar à Luz: «Em janeiro de 2007, o Benfica vendeu Ricardo Rocha ao Tottenham. O clube já tinha algumas dívidas antigas ao meu agente, então ele foi ao Benfica e propôs o meu nome para saldar a dívida. Faltavam poucos dias para o fim do período de transferências de inverno, e o clube não tinha outros defesas disponíveis. Eu jogava na terceira divisão; com o Vitória tínhamos acabado de subir à segunda. Tinha pubalgia e mal conseguia andar. Cheguei a Lisboa a 31 de janeiro, no dia seguinte fiz os exames médicos e não passei. O presidente, obviamente, não sabia disso; permaneceu um segredo. Durante três meses, chegava três horas antes aos treinos para fazer fisioterapia, depois treinava com o resto da equipa como se estivesse bem. Mas sentia-me mal: não conseguia correr, controlar a bola ou passá-la. Nem o treinador sabia do meu estado e considerava-me fraco. Só em abril joguei o meu primeiro jogo.»

«O meu contrato terminava em junho e o Benfica ofereceu-me 3.000 euros por mês. Tinha 20 anos. O FC Porto veio ter comigo com um contrato de cinco anos, com valores muito superiores. Eu não era uma prioridade para o Benfica e o FC Porto queria-me mesmo. Então liguei aos meus pais, e o meu pai disse-me: 'Não cuspas no prato onde comeste. Respeita as pessoas que acreditaram em ti. Assina com o Benfica, não pelo dinheiro'. Foi uma grande lição de vida», lembrou.

Seguiu-se Inglaterra. «Quando cheguei ao Chelsea, disseram-me que os defesas centrais tinham de aliviar a bola e concentrar-se na defesa. Hoje, pelo contrário, todos tentam construir o jogo desde trás, a partir do guarda-redes. Até as equipas procuram agora no mercado defesas técnicos, capazes de jogar com a bola. Para o futebol moderno de hoje, esta é uma exigência fundamental», recordou.

Foi nos blues que se cruzou com Maurizio Sarri. «Eu tinha uma ótima relação com Sarri, mas foi difícil para ele no início. Ele estava a tentar implementar o jogo do Nápoles. Lembro-me que gritava para o Hazard 'Tens de pressionar!'. E eu dizia-lhe que tinha de gerir, que havia outros jogadores, mas ele respondia 'Não me interessa'. Nos primeiros dois ou três meses, via-o a atirar papéis para o chão e a dizer 'Vou-me embora, não me interessa'. Todos os dias eu ia ter com ele e ele fumava-me para cima. Ao fim de três meses, no entanto, a equipa começou a segui-lo. Não é coincidência termos vencido a Liga Europa.»

O modo como supera a dor também foi tema: «Conto-vos um episódio. Quando jogava nos juniores do São Paulo, os jogos eram aos domingos. Num sábado, decidi ir às escondidas a um torneio com os meus amigos e parti as mãos. Fui ao hospital, mas quando voltei para casa perguntei-me: 'Meu Deus, e agora o que faço?'.Eu e o meu pai desatámos a ligadura e metemos as mãos debaixo de água para acalmar a dor. No dia seguinte joguei como se nada tivesse acontecido. No final do jogo, porém, voltei ao hospital.»

Treinou uma equipa de imigrantes em Paris

Entre tantas experiências, houve uma no papel de treinador de uma equipa de imigrantes em Paris. «Sim, era uma equipa de futsal. Jogavam lá dois bons amigos meus. Um dia pediram-me para ser o treinador deles e aceitei. Gosto de estar em contacto com as pessoas, gosto de ajudar quem precisa, faz parte da minha natureza. À noite ia ao campo deles e treinava-os. A minha mãe cosia-nos os equipamentos. Às vezes organizávamos festas em castelos», partilhou.

«Ser treinador será o meu futuro. Penso nisso há algum tempo, poderia começar em Chipre, nunca digas nunca», prosseguiu o jogador de 38 anos, que ainda dá cartas dentro dos relvados.

«Ainda me divirto, creio que é um dom de Deus poder jogar a este nível e com esta idade. Tive alguns problemas físicos no início do ano, mas agora estou bem, tanto física como mentalmente. Conheço o projeto do Pafos há dois ou três anos, os proprietários são pessoas extraordinárias. Sempre quis terminar a minha carreira aqui, no Pafos. O clube é ambicioso, há vontade de crescer, a infraestrutura é moderna e o pessoal é competente. E depois, o estilo de vida: há sol, mar, e os meus filhos divertem-se. Sempre fui uma pessoa curiosa e devo dizer que o futebol em Chipre está em pleno desenvolvimento. Com o Pafos jogamos na Liga dos Campeões, e os meus colegas demonstram um nível muito bom», concluiu.