Argentina: o guarda-redes-presidente Milei e os fumos negros já esquecidos do Monumental
Don’t cry for me, Argentina! O tema, cantado por Elaine Page na sua interpretação de Evita Perón na peça criada em seu nome (depois de escrito por Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, e gravado por Julie Covington em 1976), foi absorvido pelo folclore das Pampas. E não há outro que dê tom mais certo a este artigo.
O carácter emotivo da Primeira Dama, também ela figura central do peronismo ao lado do marido Juán Domingo, que apelava à mobilização em torno de um ideal de maior igualdade entre classes, é retratado na perfeição por Page e por todos os que o interpretaram nos anos seguintes, dos Carpenters a Madonna.
É esse sentimento, que é de esquerda, mas extravasa qualquer fronteira política, e bebe ainda ideais de centro e de direita, que Javier Milei, o novo presidente argentino a partir de dezembro, quer erradicar. A extrema-direita está agora irremediavelmente de volta ao poder num país que muito sofreu e perdeu com as juntas militares. E o conceito de Estado, como garante o antigo guarda-redes do Chacarita, acabou.
A forte ligação ao futebol como propaganda
A Argentina sagra-se campeã do mundo pela primeira vez em 1978. Numa final com a Holanda envolta num mar de papelinhos atirados das bancadas e que será decidida apenas no prolongamento, um detalhe chama a atenção de todos os presentes: a base dos postes das balizas está pintada de negro. Ao sanguinário general Jorge Videla e à sua estrutura de comando o pormenor é explicado como tradição antiga acabada de recuperar pelos funcionários do Monumental. Mais tarde saber-se-á, no entanto, que se tratam de fumos negros, em homenagem aos milhares perseguidos, torturados e mortos pela ditadura. Um protesto silencioso para que o mundo o entendesse.
O futebol, ainda mais num país empobrecido, vigiado e oprimido, é desde sempre um veículo de propaganda. Não é mais do que o «ópio do povo», como tantos atiraram, deturpando, em seu favor, a expressão que nasce da retórica de Karl Marx sobre religião. A Junta quer vencer e tudo fará para que tal aconteça. Não haja dúvidas disso.
Há relatos de ameaças a jogadores adversários, penáltis controversos, o uso de substâncias proibidas e, claro, o jogo decisivo diante do Peru. Para chegar à final, a Argentina tem de vencer por 4-0 e consegue um 6-0 com «facilidade suspeita», de acordo com alguns comentadores da época. No meio da trama da alegada conspiração está o guarda-redes Ramón Quiroga, nascido em… Rosario. Sim, na Argentina. Há demasiadas teorias e até um clima de intimidação à Holanda no encontro decisivo, porém nada provado.
César Luis Menotti, o selecionador, tem também ele de fazer aprovar as suas ideias, ainda mais por ser conhecido o seu posicionamento político de esquerda, que transporta para a cancha. O rosto do futebol romântico explica com uma inspiração na tradição do futebol argentino o jogo mais tecnicista e ofensivo que Mario Kempes, Osvaldo Ardiles e Leopoldo Luque desenham em campo. Aproveita-se o desconhecimento histórico dos generais. Não era o jogo físico e traiçoeiro que os rivais ideológicos colocavam em campo, que a Junta também apreciava e que ele mesmo chamava de anti-futból. Era arte.
Felizmente, para ele e para os jogadores, ganhou. Infelizmente para todos, a Junta agradeceu.
Milei, fã de… Carlos Bilardo
O segundo título mundial argentino, em 1986, é conquistado de forma bem menos estética e muito mais pragmática. O selecionador é Carlos Bilardo, antigo soldado de Oscar Zubeldía, a master mind de um Estudiantes sempre no limite (ou mesmo fora) da Lei. No México, El Narigón monta uma redoma à volta de Maradona e alcança a felicidade. Já quatro anos depois, a selvajaria que a albiceleste apresenta no jogo decisivo com a Alemanha – com um Diego limitado por uma lesão no joelho – ainda mais se aproxima do vale-tudo que propunha Zubeldía.
Javier Milei confessa-se várias vezes fã de Bilardo, por ser um «estudioso do futebol» e pela importância que dava ao resultado em detrimento do espetáculo, do belo. Nada estranho, se considerarmos o lado mais conservador de ambos.
O político tem, entretanto, o seu nome gravado numa estrela no Museu do Boca Juniors devido à sua participação no clube enquanto sócio, porém na final de Taça da Libertadores de 2018 torce contra o emblema xeneize em favor do… River Plate. Muda de lado quando Juan Román Riquelme e Fernando Gago são contratados no que considera ser «um ato de populismo». E explica: «Gago era um 5 que não sabia marcar adversários. Isso para mim não faz sentido! Um 5 tem de ser um criminoso!» Torna-se anti-Boca. Quando Gago pendura as botas, deixa de ser anti, passa simplesmente a ser não-Boca.
No entanto, nem por isso Milei se desliga da Bombonera. Não só conta com o apoio de Maurício Macri, antigo presidente do país e do Boca, nas eleições, como promete devolver a ajuda deste no sufrágio de 2 de dezembro na luta pela liderança do gigante de Buenos Aires. Se o seu candidato vencer, terá à sua frente uma forma de voltar a sentir amor pelos emblema xeneize, garante.
O Loco vai sempre à baliza
O novo presidente da Argentina é, percebe-se, um pouco louco. Basta recordar os vídeos dos debates com jornalistas e opositores sobre o estado do país. E é essa a palavra com que mais o adjetivam na sua passagem pela baliza do Chacarita, entre os 13 e os 14 anos.
«Atirava-se para todo o lado, não se importava com nada. Era daqueles tipos fortes, grandes e chamávamos-lhe El Loco Milei. Era um bom guarda-redes», recorda o antigo futebolista Gabriel Bonomi ao Infobae.
«Quando estava na baliza, transfigurava-se. Vestia a camisola e fazia loucuras na baliza, mergulhava de cabeça, coisas que nos faziam dizer 'este tipo é completamente louco’», acrescenta Perico Pérez, antigo companheiro de equipa.
Eduardo Grecco, ex-treinador do clybe, recorda ainda «uma das melhores fornadas do clube, a geração de 70» e um «despenteado» crónico, «ainda que um pouco mais ruivo, por força do sol». O seu concorrente era Juan Carlos Docabo, que chegou mais tarde a jogar profissionalmente no Vélez, Estudiantes e Banfield, e mesmo assim levava a melhor. Até uma lesão precipitar o fim da careira.
O regresso da amnésia
A Argentina já esqueceu os gritos que ecoavam dos centros de detenção, visíveis para quem quisesse vê-los, a poucos quarteirões do Monumental, ao mesmo tempo que caminhava para a conquista da primeira Taça do Mundo. Os fumos negros na base dos postes. Las Madres de la Plaza de Mayo que marchavam todas as quintas-feiras para a Casa Rosada, o Palácio Presidencial, carregadas com cachecóis brancos e fotografias dos filhos desaparecidos. A amnésia voltou.
O país virou profundamente à direita na direção do seu extremo, confiando nas palavras radicais de quem nunca escondeu a sua loucura. E se o futebol foi tantas vezes amigo dos governantes, ainda não foi desta que apoiou o povo que lhe dá força, mesmo com tantos indícios de uma personalidade instável e do exemplo de uma má vizinhança recente a norte, em Brasília, numa das mais importantes decisões da sua história.