A Escolinha que tira miúdos do gueto e dá-lhes um céu oval
«A maior vitória da Escolinha de Rugby da Galiza (ERG) é o caminho de todos os miúdos que aqui passaram. Uns ficaram ligados ao râguebi, outros conseguiram concretizar os seus projetos fora do desporto. Nós treinámo-los para a vida e coube-lhes a eles tomarem as decisões corretas. O Carlinhos, por exemplo: veio das barracas e agora está a acabar um curso de engenharia. Essas são as maiores conquistas. Porque vitórias valem o que valem; campo, continuamos a não ter. Mas temos muitos miúdos que decidiram não fazer parte de um gueto. Esse é o nosso maior orgulho e a principal conquista.»
Maria Gaivão nem hesita quando lhe perguntamos qual foi a maior vitória do clube a que preside, desde que foi criado, em setembro de 2006, com o objetivo de alargar o horizonte de possibilidades às crianças de uma comunidade socialmente desfavorecida, em grande parte composto por famílias que habitavam o Bairro do Fim do Mundo, cujas últimas barracas foram demolidas em 2009.
E Tomás Picado, jogador profissional que cresceu ali e hoje representa o Benfica, confirma a ideia sobre o clube que trata pelo nome da comunidade.
«A Galiza eleva-nos de uma maneira incrível. Basta ver as várias histórias de sucesso. O Jorginho que é empresário; eu tenho um curso de nutrição e jogo como profissional no Benfica, tal como o Belo; outros que têm cargos altos em várias empresas. Isso é muito graças à ajuda que a Galiza nos deu e aos valores que nos transmitiu: o compromisso, responsabilidade, honrar a palavra dada. Se seguirmos os ensinamentos que recebemos ali, o céu é o limite», assegura, deixando um alerta.
«Mas é preciso saber fazer escolhas. Porque no bairro, ao nosso lado, temos opções fáceis que nos prometem dinheiro imediato. Infelizmente, a vida criminosa torna muito fácil ter dinheiro. Mas esses não são bons caminhos e a Galiza tira as crianças desse meio para seguir um caminho que pode ser mais difícil, mas que vale mais a pena. Conquistamos tudo porque trabalhamos. Houve malta que jogou nas minhas equipas e que hoje tem vidas muito diferentes. É a realidade. Não se consegue ajudar quem não quer ser ajudado. Mas garanto que há muita insistência para puxar para o lado bom».
Ali, parece que todos conseguem apontar casos de sucesso. E quando o fazem, não é no râguebi que os encontram, apesar de não faltarem exemplos de quem começou na ERG e hoje faz carreira na modalidade, em Portugal e noutros países onde ela tem maior dimensão. Só que na vida não há ensaios. Tudo conta.
A «lenda», o «campeão» e a «definição perfeita»
No lote das pessoas que têm contribuído para o sucesso da ERG, porém, não haverá muitas com um papel tão determinante como Maria Fonseca. Ela que nunca pegou numa bola oval. Apesar de na meninice ter sido desportista na Guiné, foi no futebol e nos 100 metros que investiu o talento enquanto teve vida para isso.
Mas deu muito à ERG. Deu o Joseferino. «Uma lenda que prometeu que iria criar o escalão sénior, cumpriu e fez parte da primeira equipa», dizem-nos. Um jogador que «era estratosférico nas placagens», acrescenta outra pessoa. E que atualmente é voluntário para tudo o que a ERG precisa e concilia essa disponibilidade com um emprego como engenheiro informático na BMW.
Mas deu mais a Maria. Deu o Erasmo, que na época passada ajudou o Belenenses a sagrar-se campeão nacional. «Um jogador incrível na finta e na velocidade que tem o foco do Cristiano Ronaldo».
E ainda contribuiu com o Felisbelo. O Belo para toda a gente, também ele jogador do Benfica e que é «a personificação perfeita da ERG, no que diz respeito aos valores». «O Belo é capaz de ficar sem nada para poder ajudar os outros. É alguém para quem as crianças deviam olhar como exemplo. Pela humildade, responsabilidade e respeito. E depois vê-se o Belo dentro de campo e toda a gente o conhece porque é um jogador incrível».
Nenhuma das descrições dos filhos de Maria Fonseca foi feita pela própria. É demasiado tímida para isso, como se percebe quando se senta a conversar com A BOLA numa varanda com vista para o sintético da ERG, onde os filhos cresceram. E, sobretudo, porque ela sente que recebeu muito mais do que deu.
«Tenho de dizer que estou muito grata à ERG. Não só por me ter ajudado a mim, como mãe, mas porque ajudou muitas pessoas. Ajudou na integração dos meus filhos e na de outros. Foi muito difícil quando chegámos e foi aqui que fomos acolhidos», introduz a Fula, como é carinhosamente tratada, menina que aterrou em Portugal em 2004 com 35 anos e quatro filhos pequenos, e que teve como primeira morada uma barraca no Bairro do Fim do Mundo.
«Se os meus filhos chegaram onde chegaram, foi graças ao que aprenderam aqui e ao empenho de todas as equipas do ATL. Na parte da educação, a ERG ajudou-me muito porque eu saía de casa às 6 da manhã para trabalhar e só voltava perto da meia-noite. Eu passava pouco tempo com eles, mas sabia que aqui estavam seguros e tinham todo o apoio, o que me deixava tranquila», insiste.
Receber e retribuir
Tomás Picado é a primeira pessoa que nos fala de Maria Fonseca e quem nos desperta a curiosidade sobre ela. «É uma guerreira e uma pessoa incrível. Ela nunca deixou que nada faltasse aos filhos. Visto de fora, eles tinham tudo. Não deixavam transparecer qualquer necessidade. Mesmo quando moravam nas barracas, com grandes dificuldades. Porque a mãe deu-lhes uma excelente educação e ensinou-lhes que o básico é que é o essencial».
Maria educou os filhos pelo exemplo. Deu-lhes a base que seria depois reforçada no ATL da ERG. Porque no demais do tempo, estava a assegurar que tinha forma de sustentar cinco bocas. Custasse o que lhe custasse em termos físicos. Um esforço que é reconhecido pelos filhos, como nos diz Belo.
«A vida não era fácil. Viver nas barracas era… mau. Mesmo. Mas apesar de ser mau, sempre fui feliz. Porque tinha os meus amigos, e a minha mãe trabalhou imenso e fez com que nunca nos faltasse nada. Ela passava muito tempo a trabalhar e não tinha tempo para estar em casa a tomar conta de nós. E durante esse período, estávamos no ATL a ler, fazer jogos, a aprender… E isso facilitou muito a vida dela e, consequentemente, a nossa», reconhece o jovem de 24 anos.
Trabalhou «imenso» e no que tivesse de ser. Sozinha e com quatro filhos para criar, Maria não podia dar-se ao luxo de grandes escolhas.
«Quando cheguei a Portugal, fui trabalhar para as obras. Carregava portas numa obra de um condomínio perto do Casino e fazia a limpeza da obra. Depois estive em alguns supermercados, onde fazia muitas horas para ter mais algum dinheiro. Cheguei a ter três trabalhos: começava em Cascais, ia para Lisboa fazer limpezas numa casa e voltava para um supermercado. O Zé levava os irmãos para casa e tomava conta deles para eu fazer essa rotina. Trabalhei um ano inteiro sem folgas e sem férias. Sempre a correr de um lado para o outro», recorda, ela que agora tem apenas um emprego como cozinheira.
Mas só o pôde fazer porque sabia que os filhos estavam bem entregues. Num ATL que era muito mais do que o clube de râguebi pelo qual jogavam. Numa escola que mesmo já não levando ao peito como jogadores, continuam a representar.
Zé, como já foi referido, continua a ser figura presente para tudo o que é necessário. Belo e Erasmo, jogadores do Benfica e do Belenenses, respetivamente, são treinadores nos escalões mais jovens da ERG. Ensinam o râguebi e tudo o mais que aprenderam na Galiza.
Isso é algo que enche a mãe Maria de orgulho. «Eles carregam com eles o amor que lhes deram aqui. São gratos e por isso estão a retribuir aquilo que receberam. E vão continuar a estar sempre aqui, onde quer que estejam», atira convicta.
Uma certeza confirmada por Belo. «Quando éramos crianças a Galiza deu-nos tudo de graça, agora retribuímos e damos de graça também. Os nossos treinadores nunca nos pediram nada. Nós fazemos o mesmo com os miúdos. Acredito que também sou um exemplo para eles, e isso deixa-me feliz. Que queiram ser, mais do que bons jogadores, melhores pessoas», resume.
E assim estão garantidas novas conquistas da Escolinha de Rugby da Galiza. Daquelas que realmente importam.