A borboleta predadora
Mário Jardel de Almeida Ribeiro sempre me pareceu uma inocente borboleta no meio de tigres, chitas e piranhas. Passava 90 por cento do tempo a fingir que não estava lá quando, afinal, estava. Era um fingidor que fingia ser futebolista. Fingia que ia para a direita e ia para a esquerda, fingia que ia para a esquerda e ia para a direita. Nunca estava ali, estava sempre acolá. Isto, claro, nos tais 90 por cento do tempo. Nos restantes 10 por cento, invertia os papéis: era o tigre, a chita, a piranha, o escorpião ou, resumidamente, o predador implacável. Os outros, os defesas e os guarda-redes e quem o marcava, transformavam-se em delicadas e ternurentas borboletas a quem Mário Jardel, implacável e sadicamente, ia torturando. Marcou nada menos de 242 golos por clubes portugueses: 170 no FC Porto, 67 no Sporting e, já no declínio, mais quatro no Beira-Mar. Em 250 jogos. Sim: apenas 250.
Cada um de nós, portista, sportinguista ou simples adepto de futebol, recordará de forma diferente a borboleta predadora de Fortaleza. Por mim, para início de recordações, recuo até 11 de setembro de 1996: Milan-FC Porto. Os dragões perdiam por 1-2 quando, ao minuto 62, António Oliveira colocou Jardel no lugar de Barroso. A seguir, até aos 90’, as piranhas rossoneri, com Maldini, Desailly, Boban, Panucci ou Roberto Baggio no onze de Óscar Tabárez, viraram borboletas rossoneri. Minuto 75: cruzamento largo de Zahovic e Jardel, entre Maldini e Panucci, desvia de cabeça para o fundo da baliza de Rossi. O primeiro a juntar-se aos festejos foi Sérgio Conceição (esse!), sorrindo espantado e esticando o indicador da direção de Jardel, como quem diz: foi ele, foi ele, foi ele. E fora. A seguir, aos 83’, aparece a tentativa de remate de Fernando Mendes. A bola, porém, fica prensada entre o pé direito de Jardel e o pé esquerdo de Maldini. O brasileiro ganha-a ao italiano e dispara para o 3-2 final. O primeiro a aproximar-se de Jardel é Drulovic, de boca aberta de espanto. Começava a nascer o mito de Fortaleza.
Quinze meses depois, a 17 de dezembro de 1997, o mesmo FC Porto recebe o Juventude de Évora para a Taça de Portugal e, pelo meio dos nove golos na goleada por 9-1, um homem se destaca: a borboleta predadora. Entra ao intervalo com o resultado num magrinho 1-0 e, em 45 minutos, marca sete golos. As contas são simples de fazer, mesmo para quem não é perito em matemática: um golo a cada 6,5 minutos. Marcou de pé direito, pé esquerdo, cabeça, bola corrida e bola parada. Porém, para a história desse jogo, dessa época, do FC Porto e do futebol português, ficou o 5-1. Recebeu a bola de Drulovic junto à meia-lua do Juventude e, após seis toques, passou por um adversário e marcou de letra. Ou antes de abecedário todo: a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z.
QUATRO anos mais tarde, a 22 de dezembro de 2001, já com a camisola do Sporting, faz novo golo quase impossível: recebe bola longa de Beto, domina-a com o peito entre os centrais do V._Setúbal e, de primeira, remata para o 1-0 final. Estava-se no minuto 90. O Sporting mantinha o pontinho de avanço sobre o Boavista e, cinco meses depois, era campeão. Com André Cruz, Paulo Bento, Pedro Barbosa, João Vieira Pinto, Quaresma, mas, acima de todos, Mário Jardel. A borboleta predadora de Fortaleza. Que completa hoje 50 anos. O que é, para quem se tornou imortal na memória dos portugueses, uma ninharia.