Tiago Fernandes: «Se não fosse o Sporting o meu pai teria desistido mais cedo»
Passa-se hoje exatamente um ano que o futebol português perdeu uma das suas maiores figuras, Manuel Fernandes, aos 73 anos, vítima de cancro. Através duma conversa muito emotiva com o filho Tiago Fernandes relembramos as mágoas e as alegrias de um dos homens com mais jogos oficiais pelo Sporting e o seu segundo melhor marcador de sempre com 260 golos. Isto como jogador entre 1975 e 1982, condição em que conquistou dois campeonatos nacionais, duas taças de Portugal e uma Supertaça Cândido de Oliveira. Em Alvalade, foi ainda adjunto de Bobby Robson e treinador principal, conquistando uma Supertaça. Entretanto, subiu à I Liga Campomaiorense, Santa Clara, Penafiel e UD Leiria. E deixou uma marca indelével no futebol nacional e, acima de tudo, no sportinguismo.
— O seu pai partiu há um ano. Como tem sido conviver com tão grande ausência?
— É difícil porque eu passei, desde que o meu pai se reformou, aos 65 anos, quando saímos do Setúbal, praticamente os dias todos com ele. Comunicou-me que nunca mais ia treinar e eu era seu adjunto: ‘olha, tens que seguir o teu caminho, porque eu não vou treinar mais, não tenho paciência já para o futebol, está tudo mudado. Vou para a reforma, vou descansar.' Assim, desde os 65 aos 73, nestes oito anos, estávamos praticamente de manhã à noite um com o outro. E foi difícil, porque parece que ele está todos os dias comigo. Para mim, ainda está no hospital, ou tenho-o ali à noite. Ainda não consegui sentir que ele se foi embora realmente; mesmo com as homenagens todas que lhe fizemos. Não é fácil digerir, porque quem perde uma pessoa de quem se gosta tanto ou que é tão importante na sua vida, ela nunca morre. Parece estar sempre dentro de nós, sempre a lembrarmo-nos. Para mim, ele ainda continua aqui ao meu lado. Quando eu vou no carro, vou falar com ele, quando vou sozinho...
— Fala com ele enquanto conduz?
— Sim, continuo a falar. Quando há uma dúvida, alguma questão, faço-lhe uma pergunta e sinto o que é que ele me vai responder, o que pensa, o que me vai dizer. Isso é muito bonito.
— Como reagiu à homenagem de que ele foi alvo o seu pai no jogo com o V. Guimarães, antes do jogo que poderia ter dado a Liga ao Sporting, como deu? Estava no estádio?
— Sim, estava. Os adeptos do Sporting não o esquecem. Penso que os clubes, para hoje terem muitos anos de história, de vitórias e de sucessos, houve alguém que trabalhou para que isso acontecesse. E o meu pai, para mim, é a maior figura da história do Sporting; mesmo com muito respeito por todos os outros. Penso isso porque sei aquilo que gostava do clube e o sonho que alimentou de jogar no Sporting. E, também, é preciso não esquecer aquilo o que conseguiu conquistar em 12 anos no clube. E não foram só os títulos, pois nos anos 70 e 80 era difícil de ser campeão jogando ou treinado o Sporting. Além disso, é o jogador com mais jogos, é o segundo jogador com mais golos. É, também, o jogador com mais jogos sempre na I Liga. Ninguém vai bater esse recorde. É difícil: 486 jogos numa primeira divisão. Tem de ter uma longevidade grande e sempre a jogar no principal escalão, o que hoje não é fácil. E acho que os adeptos nunca o esquecem, como aconteceu na Taça de Portugal, no Marquês de Pombal ou no dia de ser campeão no Estádio José Alvalade. E eu como filho e nós como família ficamos super orgulhosos. Costumo dizer que só há um génio na família e foi ele, por muitas gerações que lhe sucedam.
— E na componente de treinador?
— Como treinador ainda gostava de fazer algumas coisas que ele conseguiu, como subir de divisão com equipas que nunca tinham subido, ter muitos jogos na Liga 2 e na Liga. Agora, como jogador era impossível. Era um craque acima da média.
— As homenagens minoram a vossa dor?
— Nem sei explicar. As homenagens que lhe pude fazer, fi-las em vida, como aquela em Sarilhos, na terra dele. Já sabia que ele estava doente e os médicos já tinham falado comigo.
— Mas, por essa altura, ele não parecia estar doente…
— Sim, mas eu já sabia que ele tinha um problema grave e pensei:’ se ele vai ter mais um ou dois anos, vou aproveitar para ver com os olhos dele aquilo que ele gostava’.
— E ainda durou mais dois anos…
— Sim, mais ou menos dois anos. Isso foi em abril e depois faleceu no ano seguinte, em junho. E fizemos-lhe uma homenagem espetacular. Não me esqueço da atitude de algumas pessoas que se deslocaram até Sarilhos para poder estar com ele. Estavam cerca de quatro ou cinco mil pessoas a ver o jogo. Os jogadores que apareceram;… o Pedro Proença, o Frederico Varandas, o António Oliveira, o Humberto Coelho, colegas que ele defrontou, adversários. Lembro-me do Zé Maria, por exemplo, que jogava no Varzim. O meu pai era o ídolo dele e ele só lhe dizia: ‘não me dês porrada, senão, não te dou a camisola’. Ele veio de transportes de manhã do Porto para o dia da homenagem. Há também o caso do Carlos César [antigo presidente do Governo Regional dos Açores e presidente do PS] , que tinha o Lula da Silva à espera dele em Lisboa e o motorista estava completamente em pânico. E ele ripostava que tinha de ir a Sarilhos porque não podia deixar passar aquele evento em branco. Acho que são essas coisas que nos marcam.
Na homenagem ao meu pai, Carlos César tinha o Lula da Silva à espera e o motorista em pânico
— Ele terá passado por dias dificílimos na parte final da vida. O êxito que o Sporting vivia nessa altura dava-lhe ânimo, por assim dizer?
— Sim, acho que chegamos a um certo ponto de estar naquela situação que é adiar o inevitável. Uma coisa é estar a viver o dia-a-dia com intensidade; outra coisa é que estares a sofrer todos os dias. E era isso que ele nunca quis: sofrer. Penso que o facto do Sporting estar a lutar pelo título… E cheguei a falar que o facto de o Sporting poder vir a ser campeão é que o estava a alimentar. Se não fosse por querer ver o Sporting com os olhos dele, acho que tinha desistido mais cedo. Se bem que, mesmo desistindo, é o destino que nos leva. E estou convicto de que foi bonito por parte do Sporting, eles irem lá ao hospital, levar a taça de campeão.
— Como é que ele viveu esse momento?
—Ficou super emocionado, super feliz.
— Estiveram o Gyokeres e o presidente Varandas?
— Esteve praticamente a Direção toda, o Gyokeres, o Varandas e a estrutura do Sporting, bem como o João Rollin, das relações institucionais. Tinha combinado com o Varandas, era uma surpresa. Depois disse-lhe: ‘vem aqui o Gyokeres e o Varandas trazerem-te uma prenda’. Quando isso aconteceu, ele esteve com a taça, a tocá-la.
— Mesmo muito doente, continuava a acompanhar o dia-a-dia do Sporting?
— Sim. Estava sempre a ver a Sporting TV. Pediu-nos para levar o tablet com a internet para ele poder ver. Estava sempre a ver aquilo o dia todo.
— Tirando os filhos e a família, como é óbvio, o Sporting foi a grande paixão?
— Sem dúvida.
— Foi o maior sportinguista que conheceu?
— Difícil. Para nós, família, era o maior sportinguista porque ele punha o Sporting sempre à frente da família. Compreendíamos isso porque sabíamos que ele, para ser o que era, tinha de abdicar de muitas das coisas de que gostávamos. Lembro-me, por exemplo, que ele só nos contou mais tarde que tinha recusado uma proposta do Benfica.
— Aquela do ordenado milionário?
— Penso que ele ganhava 500, 600 contos no Sporting. O Benfica dava-lhe 3 mil contos [15 mil euros] de salário, mas, para além disso, dava-lhe 30 mil [150 mil euros] contos na mão. Dava para comprar Sarilhos e o Montijo… Perguntámos uma vez a um senhor do banco, com a inflação, quanto é que era 30 mil contos em 1978 ou 79. E o senhor disse que era à volta de 10 milhões de euros aos dias de hoje. Sabe onde foi esse encontro? No Pinhal de Coina; escondido de toda a gente. E o senhor do Benfica estava lá com o cheque em branco para ele assinar, colocando-lhe o dinheiro que ele quisesse. Ele respondeu: ‘não assino nada agora porque vou falar com a família’. Tudo mentira, ele não falou nada com a família. Mas o que é certo é que ele disse que era incapaz de trocar o Sporting pelo Benfica.
O meu pai era incapaz de trocar o Sporting pelo Benfica
— Mais algum episódio desses?
— Aconteceu comigo. O Luís Filipe Vieira foi a minha casa para me contratar para os juniores do Benfica. E o meu pai também estava lá porque o Luís Filipe Vieira teve essa consideração. Disse que queria-me levar para o Benfica para treinar os juniores. E eu disse que tinha de falar com a família e falei com o meu pai. Almoçámos todos em minha casa. E o meu pai disse-lhe: ‘presidente, não me faça isso porque... ter um filho a treinar o Benfica é incrível, mas depois vou ter de torcer um bocadinho pelo Benfica e seria complicado…’
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