Mariana Cabral, ex-treinadora da equipa feminina do Sporting, em entrevista a A BOLA
0 seconds of 1 minute, 2 secondsVolume 90%
Press shift question mark to access a list of keyboard shortcuts
00:00
01:02
01:02
 
Treinadora portuguesa concedeu uma entrevista de fundo ao nosso jornal e onde não deixou nada por dizer (Foto: A BOLA)

Mariana Cabral: «Voz crítica deu-me problemas na FPF e no Sporting»

Dos Açores a Lisboa, primeiro, de Lisboa aos EUA, agora. Em qualquer latitude, a transparência é inegociável. O objetivo é absolutamente claro: ser solução

Frontal. Será este, porventura, o adjetivo que melhor define Mariana Cabral. Nesta grande entrevista a A BOLA, a jovem treinadora portuguesa abriu o coração e não deixou nada por dizer. Do Sporting ao… Benfica, da admiração por Ruben Amorim, passando pelo FC Porto e pela Seleção Nacional e sem esquecer a nova realidade que vive nos EUA. Está aqui tudo. Um percurso que começou por ser um caminho das pedras, mas que com persistência, resiliência e competência catapultou a açoriana para grandes voos. Porque o céu é o limite…

— A Mariana é açoriana, nascida na Ilha de São Miguel. Como começa a sua ligação ao futebol?

— Já há muitos anos, foi sempre algo que tive desde pequena. O meu pai gostava muito de jogar, eu ia com ele aos jogos lá na freguesia do Pico da Pedra, em São Miguel, no clube que era o Vitória, que começou o futebol feminino há cerca de dois anos e eu agora sou madrinha do futebol feminino. Fico muito contente por ver futebol feminino na minha ilha, porque antes não havia nos Açores. Pratiquei ténis, mas o futebol foi sempre aquela paixão, mesmo sem saber que as mulheres podiam jogar ou treinar.

— Era uma utopia?

— Era uma utopia, sim, pura e simplesmente não se pensava nisso. A minha primeira ligação ao futebol feminino foi através dos Estados Unidos, onde tenho família e onde por vezes passava férias. Os Estados Unidos já tinham o futebol feminino muito mais enraizado do que em Portugal. E a primeira grande seleção que vi foi a seleção americana de 1999, quando elas foram campeãs mundiais nos Estados Unidos e em que há uma imagem muito famosa em que a Brandi Chastain tira a camisola para festejar. E depois disso, quando vim para Lisboa estudar, obviamente comecei também a perceber que havia futebol feminino em Portugal e com grandes nomes, como a Carla Couto, a Edite Fernandes, a Carla Cristina, a Maria João Xavier, a Anabela Mendes, enfim, pessoas que já tinham feito muito pelo futebol feminino em Portugal, mas com muito pouco, com muito poucas condições, mas com muita vontade. Mesmo ao nível da própria federação ainda não havia estruturas que há hoje. Era completamente diferente e eu lembro-me de que quando comecei a jogar, no 1º Dezembro, que na altura era o campeão, nós ganhávamos trocos, 50 euros ou 100 euros, umas sanduíches, umas cervejas depois do jogo, aquela coisa um bocadinho mais de espírito distrital.

— Ver o crescimento que a modalidade teve deve ser um orgulho para vocês.

— Claro! Tenho um orgulho enorme nessas jogadoras, que não tiveram a oportunidade de ser profissionais como as jovens têm agora. A Carla Couto, especialmente, tenho pena que não tenha conseguido viver agora isto que se vive agora. Porque tinha um talento brutal. E também é por isso que eu muitas vezes no Sporting, e agora fora do Sporting também, tentei, e continuo a tentar, que o futebol feminino em Portugal cresça. Dando a minha opinião, dizendo o que acho ser o melhor para o futebol feminino. Percebo que haja pessoas que não entendem isso e também compreendo que haja pessoas que simplesmente estão bem.

— Frontalidade e transparência de uma forma construtiva.

— Sim, é precisamente isso, uma partilha de ideias. Acaba por ser crítica também, porque a crítica não tem de ter um valor negativo. Eu quero que as coisas sejam melhores e não consigo estar calada perante algo que não ache justo. E isso muitas vezes mete-me em problemas, como aconteceu no Sporting ou com a Federação Portuguesa de Futebol.

— É um traço de personalidade?

— Claramente. Tem muito a ver com isso, tem muito a ver com a personalidade açoriana, dos vulcões e da chama, da lava. Somos assim, intensos. Eu não ando ali a fingir que sou isto ou que sou aquilo, até porque muitas vezes, quando me pediram para tentar ser de outra forma, mais comedida, entrei em parafuso e, portanto, era pior. O meu treinador tem de ser genuíno, tem de ter a personalidade que tem. Há coisas que eu não concebo no jogo e no treino, porque não gosto delas, portanto, se não gosto, não vou treiná-las.

— Fale-nos do seu início de carreira, ainda no Estoril.

— Ainda começou antes disso. No futebol feminino, e tens razão, começou nessa altura, enquanto treinadora, mas antes disso, quando jogava no 1º Dezembro, conheci a Helena Costa, que foi a minha treinadora e que agora é diretora desportiva do Estoril, no futebol masculino. E foi ela que me abriu os olhos para o que era o futebol, como é que se treinava e porque é que se treinava. Porque uma coisa é ires jogar com os teus amigos jogar à bola, outra coisa é jogar futebol. A partir daí fiquei muito interessada no treino. Ela também estava nas escolas de formação do Benfica e eu comecei a estagiar. Depois, já com a Filipa Patão também lá, e com o professor António Fontes Santa, que era o coordenador e uma pessoa muito importante do treino desportivo em Portugal. E foi aí que comecei a aprender o que era o treino, o que é que se treinava e porque é que se treinava. Entretanto abriu uma turma feminina na formação que já tinha imensas raparigas. E nós andávamos lá todos, especialmente o professor António Fontes Santa, que agora está no futebol feminino do Benfica. Treinávamos num quarto de campo. E mesmo nessa altura já tínhamos jogadoras que hoje as pessoas conhecem, como a Andreia Jacinto, a Inês Pereira, a Mariana Rosa, a Vera Cid, que depois foram para o Sporting. Essa geração começa toda aí. Elas jogavam com os rapazes, na altura. Depois vou para a formação do Sporting e estive nas sub-19 e na equipa B. Também tínhamos uma equipa de sub-17. E acompanho essas jogadoras todas até à equipa A. Ver a valorização delas, como de outras, claro, é algo que me deixa muito orgulhosa. Nessa realidade do Sporting já começa a haver uma estrutura muito mais organizada. Porque falamos de formação, de equipa B e de equipa principal. Mas não havia nada no sentido em que foi preciso arranjar campos de treino, horários de treino, material… Nós, treinadores, é que muitas vezes carregávamos o material no nosso carro. Era um part-time. Eu trabalhava full-time, era jornalista. Há um longo caminho ainda a percorrer.

— Lá está a voz crítica…

— Lá está, sim. Mas sabes que quando eu também dizia algo no Sporting era muito criticada internamente. Diziam que não defendia o clube. Mas acho que a melhor prova de que isso não é verdade é que muitas vezes vou na rua e as pessoas abordam-me e agradecem-me pelo meu trabalho e perguntam-me coisas do género: como é que está o nosso Sporting? Isso para mim é engraçado, porque eu não sou do Sporting, mas as pessoas ficaram com a ideia de que eu era e isso para mim é bom, quer dizer que defendia o clube na melhor das minhas possibilidades. Quando estás num clube, tu és daquele clube e fazes o melhor para ajudares ao sucesso.