«Num treino, andei ao soco com o Carlos Resende. Mas ao soco valente!»
«Sabem aquele jogador chato? Mas um bom chato?! Era o Ricardo.» No final da melhor época de sempre do andebol português, juntámos numa conversa descontraída os mentores das caminhadas históricas de Portugal até ao 4.º lugar do Mundial, Paulo Jorge Pereira; e do Sporting até às portas da final-four da Liga dos Campeões, Ricardo Costa.
Dois homens que se conhecem «eish! há mais de 30 anos». O agora selecionador nacional era adjunto do Boavista e andava por lá um miúdo canhoto, ainda sem idade para jogar com os maiores. Mas o que importa a idade quando a qualidade abunda? Os axadrezados foram o primeiro clube que o antigo ponta internacional português representou enquanto sénior e foi lá que os dois se conheceram.
«Assim é que percebemos que já estamos a acabar. Já estamos a dar as últimas», atira Paulo Jorge Pereira para início de conversa. «Não! Ainda vai treinar os filhos do Kiko!», recebe do outro lado. E vão por ali fora. Nós limitamo-nos, praticamente, a assistir.
PJP: Eu adorava ver os filhos do Kiko jogar. Se os vir, serei uma pessoa feliz. O Ricardo se calhar não se lembra, mas eu passei horas a ensiná-lo a fintar. Porque ele era um cavalo! Ia por ali fora e fazia atacantes, dava 35 passos! E para ele nunca era passos!
RC: Fez todo o sentido o tempo que o Paulo passou comigo. Porque precisamos de aprender naquela janela de oportunidade em que temos de interiorizar as coisas. E aquilo ajudou-me muito. Por exemplo, o Kiko começou a entender o jogo muito novo. Ele ia ver-me jogar quando tinha 3 anos, e já fazia considerações técnicas. Quando eu caía depois de um remate da ponta, ele chegava à minha beira e dizia-me. ‘Pai, tu já não consegues levantar-te porque não enrolas. Custa-te?’ E eu pensava, olha-me este puto... claro que aquilo me custava, mas ser um miúdo de três anos a detetar essa debilidade em mim...
PJP: A Cândida também era muito boa jogadora. E isto deu uma mistura explosiva. Eu só não sei se ela era tão competitiva como estes três. Sobretudo como este e o Kiko.
RC: Ela era muito educada. Demasiado educada. Levava e calava. Lembro-me de a mãe lhe dar cabo da cabeça porque ela levava e não reagia.
Um pouco como era o Ricardo também, provocamos.
RC: Era, era [gargalhada]! Eu era tudo aquilo que que não devia ser.
PJP: Nós tínhamos de o amarrar, se não não sabíamos o que ia acontecer.
RC: Eu só conhecia o andebol de uma maneira: a dar tudo e sem ter medo de qualquer equipa ou jogador que estivesse à minha frente. Se eu tivesse de dar, dava. E acho que os meus filhos herdaram isso de mim. Mas eu também cresci assim. O andebol era diferente e lembro-me de aos 16 anos ter levado um soco na cabeça, do Pires, ponta esquerda do Ginásio do Sul, que me rebentou todo. No meu tempo um miúdo para entrar tinha de mostrar que tinha barba rija, porque era muito duro.
E Ricardo Costa tinha barba rija. E um feitio irascível! Nem somos nós que o dizemos…
RC: Já no FC Porto, num jogo que o Paulo estava a apitar, eu e o Carlos Resende envolvemo-nos ao soco, mas ao soco valente!
PJP: Eu era mau árbitro... [riso provocatório]
RC: Depois daquilo, eu estava a jogar a lateral direito e o [Carlos] Matos a central. Ele ameaçava o passe para mim, mas invertia para o lateral esquerdo. Já nem me passava a bola. Eu só queria que ele me desse a bola para ir para cima do Resende ele não me passava. Todos olhavam para o [treinador] Prokajac para ver se ele não ia parar e ele na boa, não queria saber. 'Eles resolvem...'
PJP: E vocês não sabem o que se passou a seguir. Eles andaram mesmo ao soco, tivemos de os separar. Aquilo para nós foi uma coisa... e acaba o treino, fomos embora e eu ligo ao Prokajac. ‘Olha lá, não vais fazer nada?’ E ele ‘What, what? Fazer o quê?’. No dia seguinte chegámos ao treino, fazemos a rodinha com os jogadores e ele diz apenas 'nós não podemos ser família só para o jornal, está bem? Siga jogo'. Porque o Resende tinha dado uma entrevista e disse qualquer coisa como ‘nós somos uma família’ e ele mandou aquela. Mas não deu importância nenhuma àquilo. E naquele dia eu percebi que há problemas que não são problemas.
RC: Sim, e nós no final do treino fomos logo ter um com outro e resolvemos. Ele tinha-me dado uma pancada que eu não estava à espera. Depois eu dei-lhe uma a ele. Éramos dois atletas muito competitivos e ninguém se ficou. Mas aconteceu uma vez na época. E era o duelo mais improvável. Eu e o Carlos. Que toda a gente sabe que é aquela pessoa muito educada e calma. Enquanto eu já sou mais índio. Mas no final do treino ficou resolvido. E hoje, como treinador, sou apologista disso. Há que resolver um conflito entre dois jogadores. Eles fecham-se num balneário e resolvem.
Antes desta conversa abrimos a conversa ao público e temos aqui uma pergunta de uma admiradora: Cândida Mota, conhecem? Ora bem, a esposa de Ricardo Costa quer perguntar-lhe o seguinte: O que teria acontecido se o Ricardo tivesse defrontado um jogador com o feitio igual ao dele?
RC: Eu adorava! E isso chegou a acontecer. O Ricardo Andorinho era muito parecido comigo em termos de competitividade. Era duro, pegámo-nos muitas vezes à batatada, mas somos dois animais competitivos e acho que fizemos sempre dos nossos treinadores melhores treinadores. Que é algo que eu sempre disse aos meus filhos quando eles vinham com queixas dos treinadores: 'faz para ajudar o teu treinador a ser melhor'. E é o mesmo que eu desejo dos meus atletas. Sempre fui alguém que tentava ajudar os meus treinadores. Sempre! Fosse ele melhor ou pior, eu sempre fiz por ajudá-lo a ser melhor.
Mesmo que tivesse de andar à batatada...
RC: Ah, claro! Eu sempre andei à batatada. Porque só conseguia estar dentro de campo dessa forma. E não acho mal. Pelo contrário, acho bem. Irritam-me muito mais atletas passivos, que nada os incomoda. Prefiro atletas que são como eu era…
PJP: Como tu eras, também é um bocado exagerado. Mas eu entendo o que dizes e tens razão. Porque a mim também me chateia o banho-maria e paz do Senhor. Não se ganham coisas importantes sempre na paz do Senhor. É bom um gajo ter paz, mas chega um momento em que se fala sobre as coisas, vai-se de frente e somos honestos uns com os outros, custe o que custar. Porque as coisas doem um bocadinho, mas depois passam. E muitas vezes é importante para construir alguma coisa. Por isso, eu compreendo o que ele diz. Mas às vezes ele exagerava. Ainda hoje... ainda hoje, por vezes, exagera um bocadinho.
Ainda exagera?
RC: Hmm. Não acho. Se estou muito mais calmo? Não. Nunca serei um treinador calmo.
PJP: Mas estás muito mais calmo, eu já te disse isso. Pelo menos por fora.
RC: Não sei. É muito mais fácil serem os outros a dizer. Por dentro se calhar também estou. Faz parte do caminho.
PJP: Nós trabalhamos isso também. Eu neste Mundial quase não falei com os árbitros e isso faz parte do processo. Mas às vezes é preciso. A intuição do treinador é importante. E há momentos em que temos de ir e é o que tiver de ser. Há cartões amarelos que são fantásticos. E mesmo dois minutos. Porque naquele momento tem de ser. Mas claro que o ideal é tentarmos outras formas, evitando essa.
RC: Muitas vezes, a estratégia de falar com os árbitros não tem nada a ver com os árbitros. É para parar o jogo, agitar a minha equipa... muitas vezes, a minha equipa precisa disso.
O Ricardo respira andebol desde que se conhece e foi uma das figuras presentes na bancada no Mundial a ver os jogos da Seleção. Como é poder despir a pele de treinador e ver o jogo dos seus filhos com alguma distância?
RC: É a melhor coisa que existe. É brutal poder despir esse lado. Eu digo muitas vezes que adorava ser feliz sem o andebol. Adorava. Não sei se vou ser capaz ou não, porque não me conheço sem andebol. Adorava ser uma pessoa como as outras. Mas ir a um campeonato do mundo ver a nossa Seleção, estar ali com os meus atletas no hotel e com mais sete ou oito seleções a conviver, é um espetáculo. Penso mesmo: é para isto que eu vivo.
E como é ver os seus filhos?! Os filhos!
RC: Oh, os filhos... é espetacular. O Manolo Cadenas diz que esta é uma história escrita a letras de ouro. Porque eu e a Cândida que viemos e vibramos com o andebol, termos ali dois filhos a jogar um Mundial, ou um Europeu, onde podemos vibrar com eles a jogar bem e a serem importantes é um espetáculo.