Lesões cerebrais no futebol: o custo da glória
A um quilómetro da Baía de Cascais está a CogniLab, que procura quebrar o tabu das concussões cerebrais em atletas – uma condição que facilmente passa despercebida e é causadora de danos irreversíveis. Estudos indicam que futebolistas que façam mais de seis cabeceamentos por semana têm uma diminuição de 18% no desempenho cognitivo, sendo a memória e a atenção as áreas mais afetadas.
Ainda assim, este é um tema tabu no futebol, que em Portugal não apresenta respostas a largo nível para fazer face ao problema, especialmente no pós-carreira dos jogadores.
Por isso, num espaço aprumado e decorado com cores confortáveis está sediada a CogniLab, ao qual reportagem de A BOLA até chegou minutos antes dos fundadores da empresa, o casal composto por Jorge Nunes e a Dra. Carolina Freitas Nunes. O motivo? Carolina acabara de estar na televisão.
«É muito comum», diz, e basta seguir as suas redes sociais para o confirmar. Entre isso e seguir a paixão médica, fundou, com o marido, a CogniLab.
«É um projeto que desenvolvemos os dois, com foco na neuropsicologia, com o objetivo às pessoas uma hipótese de terem o cérebro a funcionar melhor. Começámos muito vocacionados para demências, para pós-AVC, e agora queremos dedicar-nos aos desportistas», explica Jorge.
E como farão isso?
Aqui entra a especialidade da Dra., mestrada em Psicologia Clínica com a tese Avaliação Neuropsicológica do Impacto de Concussões por Cabeceamento em Jogadores de Futebol: «O desporto pode provocar danos, mas há danos que podem ser acautelados e nós sabemos que há evidências e estudos que mostram que, ao longo do tempo, jogadores de futebol ou de râguebi, no dia a dia, estão sujeitos a terem concussões cerebrais, devido a cabeceamentos, cabeçadas, ou placagens no caso do râguebi.»
Não se esqueça do cérebro
Conhecido como o órgão mais importante do corpo, o cérebro deve ser tratado com a importância que isso acarreta, algo que a CogniLab quer providenciar.
«Podemos fazer um acompanhamento destes desportistas desde uma fase muito inicial, de início de carreira, e vamos acompanhando com o crescimento desportivo. Da mesma forma que um médico acompanha um paciente com as análises periódicas, nós fazemos a mesma coisa, neste caso com as avaliações periódicas do estado cognitivo desses desportistas. Para melhorar o desempenho cognitivo e para prevenir a longo prazo este tipo de lesões», explica Carolina.
«Ao melhorarmos a parte cognitiva, melhoramos a parte emocional», continua, afirmando que o objetivo é «ajudar a pessoa a melhorar o seu desempenho cognitivo a todos os níveis, tanto a nível de saúde como também a evitar doenças que possam aparecer no próprio desporto».
Tabu português
Quem segue futebol americano sabe que, com cada nova temporada, inúmeras serão as notícias de jogadores que sofreram concussões no treino ou no jogo. No pugilismo também. Afinal, a cabeça é exposta a múltiplos e fortes impactos. Com o futebol, a história é diferente, devido também a um enorme pormenor.
A doutora explica que as concussões são «um tema pouco abordado em Portugal e talvez no mundo inteiro, no que toca ao futebol»: «Eu revi toda a literatura existente no mundo e há relativamente poucos estudos que se interessem, até agora pelo menos, pelo futebol propriamente dito. Há mais interesse em desportos de impacto como o pugilismo, o râguebi e o futebol americano.»
Mas tal não devia acontecer. Até porque o futebol tem diferente de todas as outras modalidades: «É o único desporto do mundo em que as pessoas utilizam a cabeça para jogarem.»
Dito isto, a CogniLab não desincentiva a prática do jogo, mas é preciso que os jogadores o façam «com mais atenção» sabendo «os limites e as regras para o fazerem mantendo a qualidade de vida». O que é imperativo, porque estudos também mostram que ex-jogadores com mais de 10 anos de carreira têm uma diminuição do desempenho cognitivo de 16%, sobretudo na memória e nas funções verbais e motoras.
Afinal, o que é uma concussão?
Um dos principais perigos da concussão é a facilidade com que pode passar despercebida, tanto para quem a sofre como para o médico. Até porque uma concussão não é um traumatismo. Ambos surgem após uma pancada na cabeça, sendo o traumatismo mais grave, mas também mais facilmente identificável.
Mas quem melhor do que Carolina para explicar? «Concussão, em latim, significa agitar violentamente. Não requer perda de consciência e acontece quando há uma aceleração e desaceleração do cérebro dentro do próprio crânio. Quando o cérebro é sujeito a uma força exterior, de uma cabeçada, um ombro, um poste, o cérebro move-se, o que pode criar vários tipos de dano estrutural.»
Como se comentou com Jorge e Carolina, se um futebolista tiver uma carreira de 15 anos (mais as épocas de formação) ao longo da qual dá dezenas de cabeçadas na bola por semana, os efeitos negativos que isso terá no cérebro são inegáveis. E infelizmente negligenciados.
«A maior parte das pessoas que sofrem concussões, e não falamos só no futebol profissional, existe também muito futebol que se joga em Portugal sem ser profissional, essas nunca são identificadas», aponta Carolina.
As ameaças não se ficam por aqui. Das concussões pode surgir uma grave consequência: a encefalopatia traumática crónica, normalmente designada por ETC. Desde logo, esta doença só é identificada... após a morte. Depois, «tem manifestações neurológicas graves, semelhantes a doenças neurodegenerativas, mas numa idade muito mais precoce», explica Carolina.
Esta doença traz «alterações, por exemplo, em agressividade, em alterações do sono, do ritmo do sono». «E este tipo de alterações, muitas vezes, são subtis e só com avaliação neuropsicológica é que a pessoa realmente consegue identificar as situações e as áreas que realmente estão aqui com dano.»
Pelo menos, há uma solução: «Treinar. Da mesma forma que nós podemos ter danos musculares, também podemos ter danos cerebrais. E estes danos, se forem trabalhados a nível da concussão atempadamente, nós podemos estimular áreas do cérebro que estão em maior déficit, para depois melhorar esse rendimento cognitivo.»
«Os jogadores de futebol estão insensíveis à questão»
A CogniLab já tem trabalhado com jogadores de râguebi. Mas de futebol, é mais difícil. «Os jogadores de futebol ainda não... Eles já começam a ter mais informação, mas ainda é muito escassa para terem essa noção [do perigo]. Se lessem o que nós lemos e os trabalhos que estão a ser feitos lá fora, noutros países já existem evidências que, de facto, os jogadores têm estes problemas», lamenta Carolina, que com a CogniLab quer «complementar um défice que existe no mercado para jogadores de futebol».
«Os jogadores de futebol estão completamente insensíveis à questão», aponta Jorge: «Estão no auge da sua carreira, eles estão preocupados no jogo que vem no próximo fim de semana.» «A exigência física é muito grande e deixam um bocadinho para trás a exigência psicológica e, principalmente, neurológica», acrescenta Carolina.
Infelizmente, os jogadores não são os únicos que passam ao lado desta questão. «Os clubes só se preocupam quando o jogador lá está. Isto é uma coisa que deveria ser o próprio jogador a se preocupar com a sua vida porque ele vai mudando de clube, mas o cérebro é sempre o mesmo. Outros que se preocupam são os agentes, que são um ponto fundamental nesta equação», explica Jorge.
«Os clubes, tenho notado que não querem aumentar os custos. E para os clubes mais pequenos, qualquer custo adicional é um problema. Então, de onde é que isto deve partir? Da Liga de clubes e da Federação Portuguesa de Futebol. O chefe do gabinete do presidente da FPF já tem a solução para este problema na mão», acrescenta.
Uma barreira difícil de ultrapassar
Jorge já fez questão de contactar diferentes entidades a apresentar a solução que a CogniLab oferece e Carolina já trabalhou com a UEFA, uma organização que, indica, está ciente do problema.
«É um assunto muito falado na UEFA que é, talvez, uma das instituições que conheço e que neste momento tem diretrizes muito rigorosas relativamente às concussões, eles preocupam-se muito». As boas notícias ficam, no entanto, por aqui: «Preocupam-se muito, mas depois fica preso em cada país, cada um com a sua própria gestão.»
Gestão essa que em Portugal não é famosa. Mas o problema não pode ser apenas apontado numa direção.
«Muitas vezes há falta de conhecimento e o ser humano tem uma grande resistência a situações que lhes são desagradáveis», explica Carolina, com o exemplo disso a ser dado por Jorge: «Eu falei com um jogador de futebol neste âmbito, e ele dizia: “Mas eu vou fazer isso para quê? Se souber de alguma coisa, eu não vou parar de dar cabeçadas? Eu não vou parar de jogar futebol?” Mas não tem que parar, a questão é essa. E aqui não é uma questão de parar, é uma questão de conhecer. Se calhar vai ter que tomar algumas medidas, fazer estimulação cognitiva, limitar o número de cabeceamentos diários. Se não, a pessoa só está a cavar o buraco ainda mais.»
«Não estamos a dizer que devem deixar de cabecear na totalidade, mas de facto reunir condições que permitam que haja um cabeceamento mais saudável e com menos danos permanentes», acrescenta Carolina.
A falta de vontade em encarar o problema até pode levar o jogador a entrar em campo com uma concussão. Raphael Varane admitiu que isso lhe aconteceu mais do que uma vez, e que estava ligado a más exibições suas. «Tem de haver mais formação. Sobretudo no futebol amador, escolar, essas áreas não têm conhecimento, mas são igualmente importantes porque muitas vezes são o futuro da Primeira Liga.»
Posto Isto, Jorge aponta que o objetivo da CogniLab é, primeiro, disseminar este serviço «no mercado português de jogadores de futebol» e depois partir para o estrangeiro.
O acompanhamento ao desportista começa a ser feito com uma bateria de testes, seguida da análise de resultados e do relatório final. Os resultados são sempre guardados e o jogador pode depois fazer um acompanhamento regular, comparando os testes recentes com os mais antigos de modo a detetar possíveis quedas nos resultados e, por isso, nas funções cerebrais.