‘Scorpion Kika’ e o bem que fará ao futebol
Kika Nazareth já é e poderá vir a ser ainda mais a inspiração para milhares de praticantes de futebol em Portugal (IMAGO / HMB-Media)

‘Scorpion Kika’ e o bem que fará ao futebol

OPINIÃO08.03.202410:00

Quantas raparigas não terão visto o golo da jogadora do Benfica e se imaginado a imitar esse pontapé, se possível na grandiosa final de um Campeonato do Mundo, o palco dos palcos?

Não sei quantos anos tinha quando vi um Pelé de braço ao peito e costelas partidas derrotar os Nazis e um árbitro tirano, consequência da monumentalidade de um pontapé de bicicleta indefensável e repetido vezes sem conta em câmara lenta. O Rei despira o manto e vestira a pele de Luis Fernández, soldado nascido em Trinidad e Tobago às ordens de Sua Majestade, entretanto enclausurado num campo de concentração alemão. Tinha talento para fintar meio mundo, ariano ou não, como explicou numa das melhores cenas, antes do encontro propriamente dito: Dão-me a bola aqui e eu faço isto, isto, isto, isto… e golo!, deixando um rasto de ésses sucessivos de uma área à outra, perante o riso dos colegas.

Michael Caine, que ficara sem o giz dessa vez, era o capitão e treinador improvisado, Stallone tinha vindo do futebol americano para se tornar herói decalcado anos mais tarde por Ricardo na defesa de penáltis com as mãos vazias, e os sempre discretos Bobby Moore e Van Himst apareciam, como muitos outros futebolistas, sob disfarce. Um deles era Carlos Rey, um aspirante a Nureyev que desenhava uma estranha dança no ar, saltando e levantando a bola com o calcanhar por cima de si e de um rival. Tantas vezes tentei, umas vezes com sucesso outras nem por isso, mimetizar aquilo que batizei, como especialidade gastronómica, cabrito à Ardiles. Osvaldo Ardiles, então um desconhecido posto a descoberto pelos créditos finais.

Esse Fuga para a Vitória deixara em nós uma fome de tal modo insaciável que levar-nos-ia, anos a fio, à procura de mais. Os clubes de vídeo hoje extintos eram verdadeiras bibliotecas, numa era em que streaming era palavra por inventar. Foi nos fundos da papelaria central das Mercês, onde os sócios alugavam VHS por 24 ou 48 horas, a não ser que se esquecessem da devolução e tinham de pagar multa, que encontrei um novo filme de futebol. Hotshot – Sede de Vencer, trazia de novo Pelé às nossas vidas, desta vez a responder pelo nome Santos (tinha de ser) e a ensinar esse pontapé de bicicleta, agora na praia, a um tal de Jimmy Kristidis. Quem antes não tinha conseguido dar esse salto de fé recebia agora um manual passo a passo, que deixaria qualquer aspirante a craque sem desculpas para não realizar o seu sonho e o de quase todos: marcar um golo assim e, se possível, na final do Campeonato do Mundo. Algo que nem Pelé conseguiu fazer, apesar das duas oportunidades e de todo o talento que se lhe reconhece.

Depois ou ao mesmo tempo, vieram tantos outros que completaram a obra. Gestos que fizeram mais pelo jogo do que qualquer decisão ou aposta política. Hugo Sánchez e Van Basten interpretaram a bicicleta à sua maneira, Roberto Carlos desafiou a física em efeitos com rasto de cometa, Josimar disparou RPG do meio-campo, e Ronaldo e Ronaldinho preferiram vírgulas a pontos finais, fosse com a bola nos pés ou em momentos atribulados da carreira. Higuita criou a defesa em forma de paraquedas. Denilson, Rivaldo e Laudrup fintaram meio planeta, porém foi Romário quem registou a patente do drible da vaca. Nunca o chatearam por marcar golos de bico, apenas quando se esquecia de voltar das férias. Platini, Baggio e Zico converteram livres de filigrana, Zidane fez soltar a inveja de malabaristas e Cristiano derrubou todas as barreiras, reescrevendo recordes. Messi e Maradona juntaram o impossível à genialidade e tornaram-se inigualáveis.

O desporto não existe sem heróis. Ou feitos heróicos. Desafios à normalidade.

Ainda se estará, por isso, por perceber a magnitude do impacto que alguém como Kika Nazareth pode vir a ter no futebol feminino em Portugal. Até mesmo para lá do dia, que se espera longínquo, em que decidir pendurar as botas de vez no vestiário. Que os deuses a protejam.

Quantas raparigas não se deixarão inspirar por aquele pontapé de escorpião ao Albergaria que, ainda que filmado à distância com pouca definição, repetições limitadas e sem super slow motion e num palco com apenas mil pessoas à volta, correu o país e viajou, via internet e redes sociais, bem para lá das suas fronteiras? Acredito que muitas. É uma das suas a encurtar distâncias e a provar-lhes que também serão capazes disso e de muito mais. Crianças e jovens, raparigas, mas também rapazes. Aos 21 anos, não há dúvidas de que já desbrava o caminho.

A atacante do Benfica e da Seleção não se reduz a uma única genialidade pouco comum. A forma como festejou esse e todos os momentos especiais que viveu na ainda curta carreira diz-nos que se diverte. Que gosta do que faz. E essa pureza, que se perdeu de certa maneira entre os homens, é única, vale ouro e é parte muito importante na forma como se expressa nos relvados. Quando se é feliz, o sucesso surge sempre com uma maior naturalidade.

O futebol feminino dificilmente alguma vez será parecido com o masculino, seja pela especificidade morfológica ou pelo desabrochar tardio, fruto de recalcamentos ou escassos apoios, porém se há alguém que nos pode fazer esquecer o que os separa será sempre quem pensa e executa como ela. Com um brilhantismo que não tem género.

Kika há muito que parece especial. A cabeça levantada, o jeito com que acaricia a bola e a domina na perfeição e o foco no passe de rotura justificam o 10 sempre mágico que transporta sem peso aparente às costas. Ainda não terá desenvolvido uma condição física que lhe permita 90 minutos de alta rotação, e talvez até possa não ser esse o caminho, contudo a visão que apresenta não parece ter rival em campo, sobretudo nos relvados nacionais. Quando é preciso encontrar espaço é a ela que recorrem. E corresponde sempre.

Acredito sinceramente que a jovem terá uma carreira brilhante, desde que a sorte a acompanhe, porém muito mais importante do que isso será o número de raparigas que viu aquele pontapé de escorpião e o revê desde então vezes sem conta, imaginando-se a fazê-lo. Tal como Pelé ou Ardiles num filme dos anos 80, ou tantos heróis depois, Kika pode já estar a inspirar milhares. Sem que se aperceba.