Ventura SC, o clube fundado pelo presidente e batizado com o próprio apelido
A palavra família é moradora habitual dos discursos dos mais variados atores desportivos que pretendem destacar a união de um grupo. Salvo pontuais exceções, a utilização do vocábulo esgota-se no sentido figurado, mas nas profundezas do futebol português vive o pináculo da literalidade. O Ventura Sport Clube, clube que milita na quarta divisão distrital do Porto, destaca-se por ter sido fundado… pelo próprio presidente.
O fim da carreira de jogador nos escalões inferiores brasileiros de Alexsandro Ventura precipitou a chegada a Portugal, em 2011. «Quando o jogador brasileiro deixa de jogar futebol, quer ser jogador ou empresário. Concluí a transferência de um atleta e depois fui convidado para assumir a gestão dos seniores do Palmeiras FC, de Braga», começou por contar a A BOLA.
As divergências com o presidente do clube culminaram na saída de Alexsandro, que, posteriormente, rumou à equipa B do Perafita. As duas experiências desapontantes na gestão de clubes ao nível distrital precipitaram uma decisão arriscada do empresário radicado em Matosinhos desde 2016: «Pensei ‘vou ter que criar uma equipa sénior para parar de ser enganado'.»
Fruto do desejo de emancipação futebolística de Alexandro Ventura, o Ventura Sport Club foi oficialmente fundado a 5 de junho de 2017 e iniciou atividade no Campeonato de Veteranos do Porto. O empresário frisou que teve de «correr atrás do sonho» e «estudar», mas admitiu que a facilidade burocrática do processo surpreendeu. «Achei muito fácil. Para inscrever uma equipa no Brasil paga-se quase um milhão. Aqui custa cerca de 500 euros e estás logo filiado. O problema foi depois», afirmou, em alusão às dificuldades que encontrou ao nível dos recursos humanos e das infraestruturas.
Tudo em família, do símbolo à camisola
A racionalidade e abertura total caracterizam, desde o primeiro dia o processo de recrutamento de um clube consciente da posição que ocupa na hierarquia do futebol distrital portuense. «O Ventura foi construído para poder ajudar os outros. Os jogadores querem alguma coisa, foram dispensados de outros clubes e dão o litro. Treinam-se no frio, à chuva, ao calor. É essa a essência. Tenho quase 10 jogadores inscritos pela primeira vez, alguns nunca jogaram futebol», explicou o empresário.
Inscrevi cerca de 50 jogadores no meu escritório, sem nunca os ter visto
Alexsandro exige que o clube seja uma ocupação secundária na vida de todos os jogadores, paralela à vida laboral ou estudantil. As restrições da base de recrutamento do clube precipitaram uma escolha de matéria prima quase às cegas, sem qualquer prospeção ao vivo: «Inscrevi cerca de 50 jogadores no meu escritório, sem nunca os ter visto.»
O «trabalho social» é priorizado em detrimento dos resultados desportivos de um clube governado pela família Ventura, cujo brasão está moldado no próprio símbolo. Rui Vieira, amigo próximo do empresário e uma das bases financeiras do projeto, é a exceção à regra de uma estrutura dominada por um só apelido: «O meu irmão é vice-presidente, a minha esposa é tesoureira e o meu pai é o presidente da Assembleia Geral.»
A ligação umbilical entre o clube e a família Ventura reflete-se nos equipamentos utilizados, produzidos pela marca Cabo Lan, criada também por Alexasndro. As funções do presidente de 43 anos estão longe de se esgotarem no escritório e estendem-se mesmo… ao relvado. O antigo médio tira o pó de quando em vez às chuteiras para se treinar com o plantel, já depois de ter entrado em campo no passado, em circunstâncias especiais.
O passado de Alex Baiano como «jogador de classe C» no Brasil, aliado às limitações do plantel, precipitaram a estreia pelo clube em 2018/19. A pandemia Covid-19 promoveu o regresso aos relvados em 2020, mas o empresário garantiu que à terceira, pendurou mesmo as botas: «A equipa está a chamar-me para jogar este ano, mas não quero.»
Um problema chamado casa
A impossibilidade legal de requerer a utilização de infraestruturas desportivas da Camara Municipal de Matosinhos nos primeiros três anos de vida do clube precipitaram tempos iniciais de casa às costas. Após três temporadas «a penar», o Ventura SC começou a utilizar o Complexo Desportivo de Leça da Palmeira, mais conhecido como Bataria em 2020, na antecâmara da segunda temporada a competir na última divisão distrital do Porto.
As limitações associadas, ainda assim, aos horários alocados ao clube (21h45-23h30) impossibilitaram, até ao momento, a criação de escalões de formação e de uma equipa B, dois sonhos de Alexsandro.
Enquanto procura uma solução preventiva para estabelecer as instalações próprias, os campos camarários são um autêntico balão de oxigénio: «Hoje temos muitos horários, mas não é a mesma coisa, porque sabemos que aqui em Matosinhos há o Leixões e o Leça e não podemos fazer mais nada. Se tivesse espaço, tinha lá 50 jogadores a treinar. É muito doloroso ter um atleta a treinar todos os dias e depois não poder ser inscrito.»
O presidente e empresário destacou que o estatuto social de Leixões e Leça dificultaram, não só a utilização de infraestruturas, mas também a mobilização de massa adepta. «Não temos sócios. Os que são, são amigos. As pessoas perguntam porque é o clube está vivo, porque quem manda aqui são eles», explicou, com desportivismo.
A construção de infraestruturas próprias encabeça a lista de prioridades de Alexsandro para trilhar a saída da sombra dos dois Grandes da região e caminho, à boleia de um «projeto de clube autossustentável», assente numa estrutura sólida «financeira» e «de pessoas». O presidente do Ventura aponta a voos mais altos, mas sem nunca dar um passo incomportável para a realidade do clube: «Não adianta subir o clube para descer, Aqui em Portugal temos esse defeito, os clubes não trabalham na construção no atleta, só querem ganhar.»
O céu é, ainda assim, o limite para quem só pensa em deixar a presidência do clube… para ser administrador de uma eventual SAD: «Eu vou colocar o Ventura nos campeonatos nacionais.»