Palavras do dirigente do Al Ittihad em entrevista a A BOLA

Rui Lança: «Os melhores projetos são os mais robustos, que aguentam pancada»

Ex-diretor desportivo das modalidades do Benfica, agora no Al Ittihad, lançou um novo livro em que aborda esta questão da cultura organizacional nas equipas. Junta entrevistas a figuras como Luís Campos, diretor desportivo do PSG, Pedro Marques, do Liverpool ou Lionel Scaloni, treinador da Argentina

Rui Lança, ex-diretor desportivo das modalidades do Benfica, agora no Al Ittihad, lançou um novo livro, denominado A Fórmula Invisível, em que aborda a questão da cultura organizacional nas equipas desportivas. Junta entrevistas a figuras como Luís Campos, diretor desportivo do PSG, Pedro Marques, do Liverpool ou Lionel Scaloni, treinador da Argentina e, a A BOLA, deixou alguns destaques e conclusões a que chegou na preparação da obra

Lançou recentemente o novo livro, A Fórmula Invisível. Fale-me um pouco dele.

É um livro que reúne um conjunto de entrevistas — são 18 entrevistas que fui realizando. Tentei abranger várias modalidades, várias áreas, em inteligência, scouting, preparação de jogos, tenho duas pessoas ligadas ao futebol masculino e feminino dos Estados Unidos. Tenho também diretores desportivos de Inglaterra, Sevilha, Barcelona. Acima de tudo, tento ir ao encontro de uma ideia que tenho: muitas vezes, no desporto, falamos de orçamentos, jogadores, dos melhores treinadores, e eu fui acreditando, até pelo meu percurso e experiência profissional — tendo estado ligado ao futebol profissional, ainda que numa experiência curta, mas muito interessante, na Primeira Liga, com o Vitória de Setúbal — que os melhores projetos, como dizia o Pedro Marques, do Liverpool, no livro, são os mais robustos. Creio que essa é a palavra mais interessante no meio disto tudo: “robustos”. Projetos que aguentam a tal pancada, as derrotas, muitas vezes apostam em coisas que não se falam. Por isso, é uma mistura entre a minha experiência profissional e as opiniões pessoais, juntamente com as 18 entrevistas realizadas. 

Há uma frase que disse numa entrevista recente que é: «Deve jogar quem mais merece jogar, e não necessariamente quem é o melhor”. Como se faz isso numa indústria virada para os resultados?

Lembro-me de uma entrevista, há muitos anos, quando o Paulo Bento era selecionador nacional, em que tocava nesse ponto. Ele dizia que há poucos jogadores que fogem à regra, mas que temos de ter uma regra. Caso contrário, é uma anarquia. E essa regra, no desporto de alta competição, deve ser que joga quem mais faz por merecer. Claro que há exceções. Há jogadores como Messi, Ronaldo, Zidane — jogadores que, mesmo fora de forma, continuam a decidir jogos. Mas na área da liderança, se não tivermos estas crenças e regras coletivas, reina a anarquia. Os jogadores deixam de sentir uma orientação clara. Vai ao encontro da meritocracia: se esta não existir, não há projeto desportivo sustentável. É verdade que o resultado é a coisa mais importante — talvez 90% da equação —, mas se deixarmos que seja sempre assim, então não vale a pena ter regras ou dinâmicas. Quem tiver talento vai sentir-se descomprometido. 

Um exemplo da mudança de paradigma é o caso do PSG, com Luís Campos.

Das conversas que tive com ele, e com quem tenho o prazer de trocar mensagens de vez em quando, há claramente uma mudança de paradigma. Se ele é 100% responsável? Nunca saberemos. As vitórias têm muitos pais, as derrotas só têm um. Mas há mudanças claras em dois aspetos: a cultura organizacional e o perfil dos jogadores. Passou-se de um clube com uma certa soberba, que procurava apenas os reforços mais caros, para uma equipa onde a equipa vem em primeiro lugar. Essa mudança começa pelo diretor desportivo, mas também pelo treinador. É a tal ideia de “a fome juntar-se à vontade de comer”: ambos partilhavam essa filosofia.  O grupo parece hoje muito mais focado no desenvolvimento e no rendimento coletivo, mais do que nas estrelas. Os jogadores são muito bons, mas têm um mindset mais coletivo. 

Como é que se alia a necessidade de vencer dos clubes a muitas necessidades de fazer dinheiro promovidas pelos donos?

Todos os clubes querem ganhar. Mesmo o último classificado quer ganhar todos os jogos. Mas há posicionamentos diferentes. Na Primeira Liga, por exemplo, há quatro ou cinco clubes genuinamente candidatos ao título. E há projetos que funcionam melhor porque quem os compra percebe a cultura do clube. No Liverpool, não basta ganhar, é preciso jogar bem. Hoje, o Liverpool tem um modelo muito bem gerido, com uso de inteligência artificial para encontrar padrões, selecionar treinadores, definir perfis de jogadores. E mesmo ganhando, há lutas internas. Porque nem toda a gente está feliz só por ganhar — há quem queira ganhar à sua maneira. Esse equilíbrio, entre investimento e rendimento, é um processo de médio/longo prazo. Se houver urgência em ter tudo “para ontem”, há passos mal dados. O Liverpool tem hoje um método muito alinhado entre investidores e cultura do clube. Contratam pessoas que conhecem o contexto do país, do clube, e que operam com competência e meritocracia. Caso contrário, reina a anarquia. 

Na Argentina há o caso de Lionel Messi. Sem a figura de Messi, seria possível a Scaloni, com quem também falou, fazer o que se fez?

A resposta é que sim, mas seria uma dinâmica diferente. Como no caso de Ronaldo. Às vezes, nós, de fora, não percebemos. Mas quando os colegas aceitam esses jogadores como líderes e os admiram, é porque eles mostram muito mais do que vemos. Muitas vezes, nós adeptos falamos sem nunca ter visto um treino. Na Argentina, o mais interessante foi ver um grupo de jogadores que já ganhou tudo — Di Maria, Otamendi, jogadores do Real Madrid e Liverpool — chegarem à seleção e jogarem como se fossem rookies. Como se precisassem daquilo para serem reconhecidos mundialmente. O Guardiola já falou disto: é difícil motivar jogadores que já ganharam tudo. A grande vantagem da Argentina — e de Scaloni — é que a seleção tem uma causa, um propósito: jogar pela pátria. Muitos selecionadores queixam-se de que os jogadores já não se motivam nas seleções. No caso da Argentina, existe uma clara motivação nacional.