Van Dijk e Robertson transportam simbólicas coroas de flores no funeral de Diogo Jota e André Silva
Van Dijk e Robertson, capitães do Liverpool, no funeral de Diogo Jota e André Silva (Foto Estela Silva/Lusa)

Os parasitas da dor alheia

Verde à Vista é o espaço de opinião semanal de Carmen Garcia, enfermeira, sportinguista e autora do blogue 'Mãe Imperfeita'

Nos últimos dias, a morte de Diogo Jota e André Silva dominou a atualidade. E se esse domínio é facilmente justificável, menos compreensível é o parasitismo da dor a que fomos assistindo em quase todos os meios de comunicação social portugueses e estrangeiros.

Reparem, eu compreendo a comoção. Duas mortes tão contranatura têm forçosamente de nos tocar a todos. E é difícil que não empatizemos com os pais que perdem dois filhos de uma assentada, com a namorada de uma vida que se tinha tornado esposa há menos de duas semanas, com os filhos pequenos que ficam sem pai e com o avô que vê partir os seus meninos. Mas empatizarmos com a dor, sofreremos também com esta perda — que acaba por ser um bocadinho de todos —, não justifica o canibalismo emocional a que assistimos nos últimos dias.

Porque uma coisa é a transmissão das homenagens e das declarações de quem as quiser, efetivamente, prestar. Outra, completamente diferente, são os grandes planos dos rostos dos pais, mulheres, familiares e amigos dos jogadores em pleno velório. Pessoas que estão a sofrer e que ainda têm de se preocupar com as câmaras que os gravam sem dó nem piedade comandadas por operadores ansiosos por conseguirem os melhores planos das lágrimas e da dor. Pessoas que acabaram de perder uma das pessoas mais importantes da sua vida, mas que sabem que a sua dor vai ser servida como alimento a um público ávido de pormenores mórbidos.

E sim, eu sei e a psicologia explica, que os media, nestes casos, funcionam como espelho emocional da sociedade e que, mais do que apenas voyeurismo, as pessoas sentem necessidade de validar as suas emoções e de partilhar a sua dor. Mas isto não pode ser feito a qualquer custo. Porque mesmo no caso de figuras públicas, há uma parte do processo de morte que tem de ser vivido em privado. Porque quem, de facto, amava quem partiu, tem o direito de poder gritar, chorar ou permanecer apático sem ter medo do julgamento de quem, instalado no sofá de casa, vai consumindo em direto as imagens do velório.

Homenagens como as que aconteceram do lado de fora do estádio do Liverpool, no concerto dos Oasis no seu regresso aos palcos e nos minutos que antecederam os jogos do Mundial de Clubes? Faz todo o sentido que sejam partilhadas. Vídeos com os melhores momentos dos jogadores, as fotografias da sua vida e as homenagens de colegas e amigos? É claro que devem ser difundidas — até porque nos ajudam a todos a participar, ainda que de forma simbólica, no ritual de despedida e isto é importante para evitar a perda de estrutura emocional. Mas diretos do velório e funeral? Grandes planos de familiares com os olhos marejados de lágrimas? Descrição de episódios de dor? Tentativas de entrevistar quem está notoriamente em sofrimento? Isso é claramente cruzar a linha da decência e do respeito que devemos ter pelos que partiram, mas especialmente pelos que ficaram.

E sim, Cristiano Ronaldo fez muito bem em não estar presente no funeral. Porque a sua presença só iria aumentar o espetáculo mediático, o burburinho e a excitação dos jornalistas que tudo fariam para conseguir umas palavras do capitão da Seleção Nacional, mesmo que isso implicasse desrespeito pela dor alheia. Ou alguém imagina um cenário diferente das centenas de flashes e microfones em riste na direção do jogador português?

Provas fossem necessárias e houve uma jornalista que, em direto, pouco antes do início das cerimónias fúnebres, enquanto comentava tudo o que se ia passando — com uma quantidade de pormenores inenarrável no contexto —, informava o colega em estúdio que tinha de ir rodando a cabeça frequentemente para não perder o momento em que chegasse Cristiano Ronaldo.

Muitos criticaram o capitão da Seleção Nacional pela sua decisão, mas talvez esses tantos se tenham esquecido que, aquando da morte do pai, o jogador e a sua família passaram por um autêntico martírio que, como bem lembrava a sua irmã Kátia nas redes sociais, os impediu inclusivamente de sair da capela mortuária com receio de serem engolidos pelo espetáculo mediático que se tinha montado ao redor. Para além do sofrimento experimentado pela morte do pai, Cristiano e a família ainda tiveram de sofrer com o mediatismo. E é absolutamente natural que Ronaldo tenha tentado minimizar, dentro daquilo que estava ao seu alcance, este mesmo sofrimento para a família de Diogo Jota e André Silva.

E sim, é preciso ter coragem para tomar esta decisão. Ou alguém acha mesmo que não teria sido mais fácil apanhar um avião e vir fazer bonito? Cristiano sabe, como todos nós sabemos, que tudo aquilo que faz é escrutinado até ao mais ínfimo pormenor e que existe sempre alguém ansioso por poder criticá-lo. Escolher não estar presente e assumir essa decisão é, quanto a mim, prova de nobreza de caráter e sinal inequívoco de que o capitão da Seleção Nacional pensou em Diogo Jota e André Silva antes de pensar em si mesmo.

A morte dos jovens irmãos chocou o mundo inteiro — e este é o poder das relações parassociais que vamos desenvolvendo e que nos fazem sentir que conhecemos alguém que, na verdade, nunca esteve sequer perto de nós. Mas esse choque não pode legitimar tudo. E a verdade é que nos últimos dias a comunicação social encontrou respaldo na sociedade para ir mais longe do que deveria e para furar uma bolha que devia ser reservada a quem tinha mesmo lugar no coração de Diogo e de André.

É que prestar homenagem, não nos esqueçamos, é completamente diferente de parasitar, explorar e comercializar o sofrimento alheio. Mais uma vez, a comunicação social, com a nossa conivência, cruzou uma linha que deveria ser inultrapassável.

Aos familiares do Diogo e do André, o meu abraço. Há um provérbio africano que diz que um morto amado nunca mais nos pára de morrer. E quem já perdeu alguém que ama sabe que esta é uma verdade indiscutível. Os próximos tempos serão profundamente dolorosos para os familiares e amigos dos dois irmãos. Mas chegará o momento em que a dor ficará um bocadinho mais suportável. Porque «a morte é a curva na estrada, morrer é só não ser visto». E o Diogo e o André permanecerão enquanto aqueles que os amam também permanecerem.

No pódio

O Benfica contactou a Federação Portuguesa de Futebol com o intuito de alterar a data para a qual está marcada a Supertaça. Ora, recordemos que a data atual, 31 de julho, foi marcada com a aprovação do clube e que, na verdade, foi precisamente para dar ao Benfica mais tempo de preparação para a 1.ª mão da 3.ª pré-eliminatória de acesso à UEFA Champions League (que será jogada a 5 ou 6 de agosto), que se optou por esta data em detrimento do 1 de agosto inicialmente sugerido. Esteve muito bem o Sporting ao não aceder ao pedido, uma vez que a data foi definida com o rival e, ainda para mais, decidida em seu benefício.

Na bancada

Segundo alguns jornais, o plantel do Benfica e Bruno Lage estarão de candeias às avessas, com o treinador a dar início a um processo de limpeza que tem gerado bastante descontentamento interno. E se a ideia do treinador é reestruturar, parece-me que se está a esquecer que a comunicação é parte fundamental deste processo. É que sem uma boa comunicação e uma apresentação de visão a longo prazo, o clube da Luz pode acabar por mergulhar numa instabilidade muito maior do que aquela que, neste momento, já parece viver no balneário.