Arbitragem em Portugal (aqui com um esloveno para não ferir suscetibilidades) está a ferro e fogo - Foto: MIGUEL NUNES
Arbitragem em Portugal (aqui com um esloveno para não ferir suscetibilidades) está a ferro e fogo - Foto: MIGUEL NUNES

Os árbitros não são vilões

Verde à Vista é o espaço de opinião semanal de Carmen Garcia, enfermeira, sportinguista e autora do blogue 'Mãe Imperfeita'

O futebol português, às vezes, transforma-se num lugar do qual apetece fugir. Uma espécie de pântano que vai puxando para baixo os que nele adentram e que contamina tudo e todos em redor. E as últimas semanas foram um retrato perfeito disso mesmo.

Antes de prosseguir deixo o disclaimer: a arbitragem sempre esteve presente na minha vida e, talvez por isso, a minha perceção seja diferente da maioria dos adeptos de futebol. Lembro-me de ser pequena, devia ter uns cinco ou seis anos, e de ir assistir a um jogo da então terceira divisão, onde os dois homens ao nosso lado ofendiam o árbitro que era (e ainda é) uma das minhas pessoas preferidas no mundo.

É óbvio que, atendendo à minha idade, não devo sequer ter percebido a maioria dos insultos, mas lembro-me perfeitamente daquele que, pela inocência típica, mais me magoou: um dos homens, barrigudo e cheio de pelos nas mãos e braços, gritou alto e bom som para dentro de campo «és um urso». E eu, indignada, devolvi-lhe o cumprimento: «Tu ainda és mais urso porque és mais gordo e peludo». É claro que esta ousadia me rendeu um castigo, mas ainda hoje o sinto como injusto. Como é que aquele homem podia estar a chamar nomes feios à minha pessoa e eu não podia responder-lhe na mesma moeda?

Hoje, seguindo os passos do pai que abandonou a arbitragem há uns bons anos, é o meu sobrinho mais novo que, com vinte e um anos, dá continuidade à tradição familiar de existir sempre um árbitro no ativo.

E desconfio fortemente que o próximo será o meu filho João que, no aniversário passado, pediu que lhe oferecêssemos um apito e cartões. E sim, ainda hoje tenho dificuldade em morder a língua quando ouço o meu sobrinho ser ofendido dentro de campo. Aliás, ainda há umas semanas um miúdo de uma equipa de iniciados fez uma publicação no Instagram com uma fotografia do meu sobrinho durante um jogo e a legenda «palhaço» e eu estive vai não vai para lhe ir lá pregar um sermão. Só não fui porque achei que essa tarefa deveria pertencer aos pais em primeiro lugar e ao clube em segundo. A questão é se os pais e os clubes, de facto, têm algum interesse em fazê-lo. Porque sim, normalizou-se ofender os árbitros. Quantas vezes, em Alvalade, não ouço miúdos da idade dos meus filhos a ofenderem o homem do apito com a conivência dos pais? E quantos pais não passam os jogos inteiros a chamar nomes ao árbitro com os filhos ao lado? Pergunto-me se serão estes pais que, depois, procuram ensinar aos filhos que o bullying é errado e que não devem ofender ninguém. Ninguém excepto os árbitros, pois claro. Porque no imaginário colectivo português, o árbitro foi feito para ser ofendido e achincalhado. Normalizou-se esta cultura de ofensa e, desgraçadamente, os principais culpados disto são os próprios clubes e as figuras que os representam.

É óbvio que esta cultura de tiro ao árbitro não é de hoje, mas os últimos dias têm sido particularmente vergonhosos no que a ela diz respeito. Reparem, é claro que os árbitros não são intocáveis, que erram e que não estão isentos de críticas. É por isso que são observados e avaliados. Mas a maioria deles é dedicada, tem qualidade e integridade.

E quando os clubes transformam cada erro num campo de batalha para proteger o próprio ego deixam de proteger o jogo. E no duelo entre clubes e árbitros o único derrotado é mesmo o futebol.

Quando os clubes atacam os árbitros de forma constante começam, como bem sabemos, a condicioná-los. E sim, não são só vídeos nos balneários ou comunicados que condicionam a actuação dos homens do apito.

As declarações pós-jogo também o fazem. Desgraçadamente parecem existir direcções a quem dá jeito o ambiente crispado e tenso, a hostilidade e a desconfiança, talvez porque sejam óptimas cortinas de fumo para tapar as suas próprias falhas.

Os árbitros, bem o sabemos, são um óptimo bode expiatório quando os desaires se acumulam ou quando o trabalho de direcções e/ou equipas técnicas deixa muito a desejar.

O problema é que deitar o fósforo numa casa já regada com gasolina faz com que ela comece inevitavelmente a arder e, neste caso, esse fogo traz consigo a escalada para a violência física e verbal naquilo que deveria ser simplesmente um espectáculo desportivo. E o ambiente começa a deteriorar-se. As redes sociais transformam-se em verdadeiros ringues, com ameaças constantes e trocas de insultos, e a parte mais bonita do futebol acaba mesmo por desaparecer.

Já para nem falar do péssimo exemplo que é dado aos jovens futebolistas que vão crescendo a achar que é normal e aceitável apontar o dedo aos árbitros em vez de perceberem o que fizeram de errado e o que devem melhorar. Conflitos permanentes entre clubes e árbitros passam aos miúdos a ideia de que as decisões só devem ser respeitadas quando lhes são favoráveis e isso é pura e simplesmente deseducá-los.

Depois, pináculo máximo da incoerência, vemos esses clubes e essas direcções a promoverem campanhas sobre fair-play e respeito. Exactamente aquilo que não têm para com os árbitros, pois claro.

O meu filho, que ainda joga no escalão de benjamins, sabe que está proibido de falar de arbitragens. Mas também sabe que os árbitros erram — assim como ele que ainda há três semanas marcou um autogolo.

Hoje, no supermercado, ouvi um pai muito indignado, com o filho ao lado, barafustar porque o VAR deveria ter interferido e anulado o golo ao Sporting na sequência do pontapé de canto que deveria ter sido pontapé de baliza. E eu ainda pensei explicar-lhe que, de acordo com as regras, o VAR não podia interferir. Mas decidi calar-me quando ele continuou a dizer ao rapaz do talho, já colérico e em tom gritado, que isto está tudo combinado e que, depois do apito dourado, temos o apito verde, agora com Frederico Varandas a puxar os cordelinhos dos árbitros de Portugal. Paciência para teorias da conspiração? Tenho zero. Até porque, já dizia a minha avó, o pior cego é mesmo aquele que não quer ver.

E sabem que mais? Quando, no futebol, o respeito é substituído pelo ruído ninguém ganha — nem mesmo quem grita mais alto. Era bom que clubes e adeptos percebessem isto de uma vez.

No Pódio
Neemias Queta, o português dos Boston Celtics, fez uma grande exibição na vitória da equipa frente aos Orlando Magic (oito pontos, seis ressaltos e um desarme de lançamento) e consolida cada vez mais a sua importância na equipa. Com uma taxa de concretização de lançamentos superior a 60%, o português está em ascensão na NBA e tem vindo a ganhar cada vez mais tempo de jogo e responsabilidade dentro da rotação dos Celtics.
Na bancada
Andreas Schjelderup junta-se a Raul Asencio e está também implicado num escândalo que envolve partilha de conteúdo sexual com menores, neste caso via Snapchat. E se a idade do jogador à data dos factos pode servir como atenuante, a verdade é que, cada vez mais, temos de educar para a importância de não compartilhar este tipo de conteúdos – não sendo esta a única razão pela qual estas partilhas são erradas, convém recordar que um estudo realizado nos EUA mostra que 51% das vítimas de partilhas deste tipo de conteúdo contemplam a hipótese de suicídio. Schjelderup parece ter consciência da gravidade daquilo que fez e estar genuinamente arrependido. Oxalá as consequências que está a enfrentar sirvam como exemplo para outros jovens futebolistas.