Obrigado, Rui Patrício!
Os resumos, os highlights, não são conclusivos. E a memória atraiçoa-me com frequência. Até hoje, lembrava aquele punchline que Patrício, apoiado pelo poste direito e num grito imaginário e cavernoso de NÃO PAS-SA-RÁS!, ao jeito de Gandalf, o Cinzento, como resposta a um cabeceamento de, imagine-se, Vida. O gigante croata, com crina impecável, ameaçara tantas vezes pelo ar que talvez na minha mente tenha virado uma espécie de Balrog das Minas de Mória e substituído a realidade. Só que agora que recupero o momento, e sem certezas, por falta de prova, parece-me que a bola saiu sim transviada de outra luta titânica, entre Pepe e Perisic, para o voo picado do guardião de todas as esperanças portuguesas, nesse prolongamento, em Lens.
Mão direita esticada e o poste, o alívio e a bola cair de novo do lado da trincheira croata. Por pouco tempo. Ter-me-ei debruçado sobre o portátil para adiantar umas frases, estava quase a acabar. E precisava de ganhar tempo para os penáltis que já se anunciavam, aos 115 minutos. É então que as bancadas se arrepiam e o suspense chega, acompanhado por sonoplastia de circunstância. Aquela ansiedade sonora que deixa rasto e espera fechar em crescendo, com explosão. Quando levanto os olhos, já o bom do Renato, com os músculos ainda sãos, passara o meio-campo. Não sei como, mas tinha a bola.
Ali, pouco depois da linha que dividia territórios, brotava o espaço, como se tivesse sido descoberto por acidente um veio de petróleo onde não era suposto existir. Seria vez sem exemplo, a única oportunidade? Ainda que não seja da nossa história acertar nos momentos… certos. Após um jogo fechado, amarrado, com ascendência de Modric e companhia e o Portugal de Fernando Santos se ter aguentado à espera de qualquer coisa que viesse em sua salvação, o tempo abrandava. Os gritos arrastavam-se. Os corpos erguiam-se. Talvez o terço se enrolasse já na mão direita de Fernando Santos. Não sei.
Renato serviu Nani um pouco sobre a esquerda. Não a melhor das decisões. Os croatas baixaram, pareciam controlar. Só que o passe que rapidamente se seguiu, meio trivela, meio bico, até algo deselegante, passou no intervalo de tudo. Até dos pensamentos de quem ajustava. E encontrou Cristiano ao segundo poste. Era ali. Ele não falha dali. Mas Subasic já estava em cima, o remate encontrou o seu corpo e milhares de mãos apoiaram nesses microssegundos rostos de espanto. A bola sobrou para onde apareceu Quaresma, o joker do engenheiro quando até ele concluía que não podia ser só defender. A empurrar. Quase em cima da linha. Fazendo explodir o golo recalcado, já inesperado, durante 117 minutos naquelas bancadas.
Minutos depois, a seguir a Portugal ter sido pior em tudo e festejado à conta de um segundo remate enquadrado com a baliza, os dois na mesma jogada calculo, estava frente a frente com aquele que para mim tinha sido decisivo. Disparei! «Rui, o que passa na cabeça de alguém que está na iminência de sofrer um golo e ser eliminado de um Europeu, mas consegue fazer a defesa da noite e vê, segundos depois, um companheiro marcar e apurar a todos para os quartos de final?» Não vou mentir. A resposta não foi brilhante. Tanto que repeti a questão, por outras palavras, duas vezes mais. Só que o bom do Rui tinha decorado a resposta e, na sua cabeça, dizer que tinha feito apenas o seu trabalho continuava a fazer todo o sentido. Quase sem pingo de emoção.
O melhor jogador desse Europeu, talvez com Nani por perto, viveu dois anos depois a invasão de Alcochete, rescindiu e não voltou atrás. Mais do que assinar pelo Wolverhampton — um clube que a dado momento do seu percurso, mais concretamente nos anos 50, após um triunfo diante do Hónved, chegou a reclamar ser o melhor do mundo —, garantiu o seu espaço na maior liga do planeta, conseguindo esconder fragilidades que poderiam aí ser expostas com naturalidade. Há quem diga que foi aqui que Patrício se perdeu, ao não voltar atrás na rescisão, ao não perdoar Alcochete, ao não se perpetuar na baliza do Sporting, desafiando o estatuto lendário de Vítor Damas, todavia, nós somos e seremos sempre as decisões que tomamos. Não faltará orgulho ao guarda-redes, que ainda somou Roma ao lado bom da carreira, antes de não vingar na Atalanta e no Al Ain e agora se reformar, aos 37 anos. Rui Patrício despede-se a merecer muitos agradecimentos. O meu aqui fica.
O BENFICA PARA LÁ DO NÁPOLES
Enquanto um capítulo se fecha, outro continua a escrever-se em Lisboa. À luz da Champions, o Benfica mediu-se com o Nápoles e mostrou a melhor versão da era Mourinho. Não vou aqui tirar mérito ao triunfo, indiscutível, ainda que hoje ser campeão italiano tenha menos peso do que em décadas anteriores e o valor europeu deste novo Nápoles ainda esteja em fase de consolidação — o Inter de Simone Inzaghi foi de longe o melhor projeto continental transalpino, com as águias bem se lembram, e desfez-se diante do PSG.
Ainda mais, desculpando-se com cansaço físico e mental, foi uma squadra pouco transalpina e pouco à imagem de Conte, cometeu erros ingénuos e abriu espaço. E todos sabemos que o problema dos encarnados nunca foi jogar quando este existe. Entretanto, o treinador desvaloriza desde que chegou o que tem, ao mesmo tempo que valoriza sempre os rivais. Basta olhar para o dérbi e para o que disse de um Sporting que «não tem pontos fracos», é «uma excelente equipa», enquanto «o Benfica esconde fragilidades», ideia que repetiu com o Nápoles.
De qualquer forma, os encarnados somam mais um triunfo. O técnico continua dentro das suas próprias contas na Champions e teremos de esperar para ver se serão ou não suficientes. Também os jogadores estão com Mourinho. Beberam do seu espírito e as suas ideias, o que é, pelo menos, um bom sinal. Claro que, por mais golos de calcanhar que marque, Barreiro continua a não fazer sentido na equipa que o Benfica deveria querer ser. Entretanto, Richard Ríos está cada vez mais adaptado e finalmente mais perto do registo cafetero e a equipa continua a precisar de um lateral-esquerdo, que até pode ser José Neto. É preciso acreditar.