Minoria na governação!...
Apartir dos resultados verificados na Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal passou a fazer parte de linguagem do dia a dia dos comentadores e opinadores a expressão minoria de bloqueio para qualificar aqueles que votaram contra os relatórios e contas de 2019/2020 e 2020/2021 e que, ao fim e ao cabo, constituíram a maioria absoluta dos votos dos associados presentes.
Nos tempos finais da sua governação, Cavaco Silva falava em «forças de bloqueio», referindo-se a pessoas e instituições que, na realidade, tinham poderes para bloquear determinadas reformas: poderes legais e outros de facto. É assim a vida, mesmo em democracia, que não é perfeita, mas, mesmo assim, a melhor forma de vivermos em sociedade.
O que se passou na Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal não tem nada a ver com forças de bloqueio e, muito menos, minoria de bloqueio. Vejamos o que é uma minoria de bloqueio através de exemplos correntes.
Nas reuniões do Conselho da União Europeia, cerca de 80% das propostas são votadas por maioria. Cada ministro tem direito a um voto: pode votar a favor ou contra a proposta ou abster-se. Todavia, o número de cidadãos representados varia em função da dimensão do país. Por vezes é necessária uma dupla maioria ou maioria qualificada para tomar uma decisão: é necessário que pelo menos 55 % dos países da UE (15 dos 27) votem a favor e que representem, no mínimo, 65% da população da UE. Pode ser constituída uma minoria de bloqueio por, pelo menos, quatro Estados-Membros que representem, pelo menos, 35% da população total da UE.
Na Assembleia da República, havendo maioria absoluta de um partido, dificilmente, e na maior parte das matérias, a minoria constitui bloqueio. Mas se estivermos perante matérias de revisão da Constituição, já a minoria pode constituir uma força de bloqueio ou uma minoria de bloqueio. É o caso, por exemplo, da revisão constitucional: a Assembleia da República pode rever a Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária; mas pode assumir em qualquer momento poderes de revisão extraordinária se tal for deliberado pela maioria de quatro quintos dos Deputados (184) em efectividade de funções. Neste caso, um quinto dos deputados e mais um - 47 deputados - constitui uma minoria de bloqueio para uma revisão extraordinária da Constituição! Ainda no âmbito da Constituição da República Portuguesa, as suas alterações têm de ser aprovadas por maioria de dois terços dos Deputados (154) em efectividade de funções, o que significa que um terço e mais um dos deputados - 74 - constituem uma minoria de bloqueio às alterações à Constituição.
Mas, fora destas situações de alteração à Constituição, temos no dia a dia corrente da Assembleia da República situações em que uma minoria dos deputados pode constituir uma minoria de bloqueio. Todos se lembram da VIII Legislatura da Assembleia da República e do mandato do deputado Daniel Campelo, eleito pelo CDS, e que ficou conhecido pelo deputado do queijo limiano. Durante o seu mandato, e à revelia do seu próprio partido, levou com o seu voto de abstenção à aprovação de dois Orçamentos do Estado do XIV Governo Constitucional de Portugal. Na época o Parlamento encontrava-se dividido a meio, com 115 Deputados do Partido Socialista e 115 Deputados dos Partidos da Oposição, pelo que a troco de um pacote de medidas em benefício da sua terra natal, nomeadamente a manutenção da fábrica de queijo limiano, o que motivou a sua suspensão do partido, se absteve. Curiosamente, é um exemplo de como um só deputado pode ser uma força de bloqueio ou de... desbloqueio!...
Chumbo de relatórios e contas é dor de cabeça para o presidente Frederico Varandas
Ora, nas associações a que se refere o Código Civil, como é o caso do Sporting Clube de Portugal (não da Sporting SAD), tanto aquele diploma legal como os estatutos deste estabelecem que as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes, o que à partida torna inadequado, e até despropositado, falar em maiorias ou minorias de bloqueio ou de outra coisa qualquer. A maioria absoluta dos associados presentes ou toma a deliberação ou não a toma. No caso recente, foi isso que aconteceu: a maioria absoluta dos associados presentes não aprovou os relatórios e contas em discussão, e a minoria votou favoravelmente, o que significa que não foi uma minoria que bloqueou, mas sim a maioria!
Se estivéssemos numa assembleia para alterar estatutos que exigem a votação favorável de três quartos dos associados presentes, aí sim poderia haver fundamento para qualificar a minoria que rejeitasse a alteração, não permitindo que a maioria atingisse os 75% dos votos, de minoria de bloqueio.
E se quisermos ser honestos, temos dentro da nossa casa um exemplo de como o Sporting Clube de Portugal pode ser uma minoria de bloqueio na SAD, se não tivesse a maioria. Na verdade, nos termos do regime jurídico das sociedades anónimas desportivas, as acções de que o clube fundador seja titular, ainda que estejam em minoria, conferem sempre: o direito de veto das deliberações da assembleia geral que tenham por objeto a fusão, cisão ou dissolução da sociedade, a mudança da localização da sede e os símbolos do clube, desde o seu emblema ao seu equipamento; o poder de designar pelo menos um dos membros do órgão de administração, com direito de veto das respetivas deliberações que tenham objeto idêntico ao da alínea anterior; e os estatutos da sociedade desportiva podem subordinar determinadas deliberações da respetiva assembleia geral à autorização do clube fundador.
Tal como as acções que constituem uma golden share - acções que têm direitos de voto especiais que permitem um controlo mesmo por acionistas minoritários. Como se constata, há muita ignorância acerca do que é uma minoria de bloqueio, que vem sendo falada de forma depreciativa, mas que pode ter muita utilidade quando estamos perante maiorias absolutas autoritárias.
Acontece que, no tipo de associações em que os clubes como o Sporting, o Benfica e outros se integram, as assembleias são universais, por conta de estatutos anquilosados, que não acompanham a evolução dos tempos, ao contrário de outros como o Real Madrid, o Barcelona e outros clubes, que não sendo sociedades anónimas desportivas há muitos anos que não funcionam com assembleias universais (excepto as eleitorais), mas sim compostas por delegados eleitos, tal como os restantes órgãos sociais. Era bom que metêssemos isso na cabeça, em vez de andarmos sempre a discutir o que não tem qualquer interesse para o progresso dos nossos clubes. Em assembleias gerais universais, as maiorias e as minorias são circunstanciais e dependem de muitos factores que não têm a ver com a razão, mas com a emoção e a paixão, que muitas vezes não são compatíveis com matérias em que é bom ter os pés assentes no chão. O futebol é jogado com os pés e com a cabeça, mas deve ser pensado só com a cabeça!
Mas outra coisa é preciso meter na cabeça, porque continuam a recusar discutir com seriedade e rigor a questão de os órgãos sociais não serem eleitos pela maioria absoluta dos votantes, o que é, aliás, como venho dizendo, sem ser contrariado, contra o disposto no Código Civil. Depois dá nisto: para aprovar o relatório e contas é necessária a maioria absoluta dos votantes, mas para eleger os autores desses relatórios é necessária apenas uma maioria relativa, isto é, uma minoria entre todos os votantes.
Se a assembleia fosse composta por delegados eleitos simultaneamente com os membros dos outros órgãos sociais, teríamos um Conselho Directivo que não teria apoio maioritário na assembleia, a menos que o negociasse. Assim, como não sabe, em cada momento, onde está a maioria dos votantes e dos votos, funciona sobre o arame. Na verdade, o Governo da República, tendo presente a composição da Assembleia da República, consegue negociar com alguns partidos da oposição uma gerigonça governativa.
Contudo, o Conselho Directivo não sabe, porque não pode saber, onde está a maioria ou a minoria dos associados que vão às assembleias gerais, o que o coloca ainda em maior desvantagem relativamente à geringonça que governa Portugal, uma vez que parece que o apoio já nem depende da bola que bate na trave ou que entra, isto é, dos resultados desportivos.
Enquanto tivermos estes estatutos, desfasados da realidade, falar em minorias de bloqueio é deitar poeira para os olhos das pessoas. Nas assembleias gerais, tais como elas estão configuradas, não há maiorias ou minorias. O que há são deliberações aprovadas pela maioria absoluta dos associados presentes ou rejeitadas pela maioria absoluta dos associados igualmente presentes. O mal não está em qualquer minoria de bloqueio, mas no sistema de governação e na minoria em que ela assenta.