Laranja Mecânica à moda do Porto
Ponto prévio: André Villas-Boas não é Pinto da Costa.
Não autoriza que ponham enxofre nos balneários adversários, obrigando os rivais a equipar-se nos corredores por não aguentarem o cheiro.
Há relatos de jogadores de Benfica e Sporting que ainda hoje recordam esse perfume sulfuroso com uma nostalgia entre o desconforto e o enjoo.
O FC Porto das Antas era um laboratório de experiências olfativas, uma espécie de Jean-Baptiste Grenouille de camisola azul e branca, a transformar o balneário visitante numa instalação química digna da série Breaking Bad.
Villas-Boas é diferente.
Não precisa de efeitos especiais.
Prefere a estética, o conceito, o detalhe.
Não distribui conselhos matrimoniais a árbitros na véspera de jogos importantes — como aquele célebre episódio em que um juiz, atormentado pela vida extraconjugal do pai, procurou a sapiência em assuntos amorosos de Pinto da Costa.
AVB não se mete nessas coisas. Acredita no mérito. Nas contratações certeiras. Na transparência. E nunca, jamais, entra no balneário dos homens do apito para partilhar a sua visão sobre lances duvidosos: um ritual antigo, quase folclórico, que Pinto da Costa transformou numa arte performativa.
Com Villas-Boas é outro campeonato. O da gestão moderna, da folha de powerpoint e do discurso controlado sempre a exaltar a aura de inovação.
É elegante na mensagem.
Não pressiona árbitros.
E não age como os calimeros de Lisboa.
Menos quando age.
Como naquela gala da FPF, depois do FC Porto–Benfica, quando disparou em todas as direções com a serenidade de quem medita em lava vulcânica.
Mas tirando essa vez… e mais um comunicado, e outro, e talvez mais um, Villas-Boas é uma lufada de ar fresco. Um novo tempo. Um FC Porto novo. Uma liderança feita de palavras calmas, entre uma indignação ou outra.
Agora, Fábio Veríssimo escreve no relatório que sofreu «pressões» ao intervalo do FC Porto–SC Braga.
Segundo o árbitro, o balneário da sua equipa tinha um televisor (que, curiosamente, não dava para desligar) a passar, de forma sistemática, dois lances em que o FC Porto se sentia prejudicado.
Um desses momentos foi o golo anulado a Froholdt na primeira parte do próprio jogo. O outro, mais rebuscado, lembrava uma jogada entre águias e dragões do sempre mediático Torneio da Pontinha — essa Cannes do futebol juvenil português, onde todos acreditam que vão ser descobertos por Steven Spielberg.
Ambos foram apitados por Veríssimo que, segundo os dragões, teve critérios diferentes em jogadas semelhantes.
Os dois lances.
Em loop.
Sem pausa.
Sem botão off.
Mas não confundam isto com pressão, deselegância ou manipulação.
Isto é cinema.
Cinema puro.
Um televisor que não se desliga, forçando os presentes a assistir em silêncio, não é intimidação, é uma instalação artística. É uma homenagem ao génio de Stanley Kubrick e ao seu Laranja Mecânica, lançado em 1974.
Só faltavam as molas nos olhos de Alex, a personagem principal, e um copo de leite com substâncias duvidosas para completar a experiência imersiva.
Fábio Veríssimo não percebeu a referência.
Falta-lhe sentido de humor.
E um maior conhecimento das maravilhas da sétima arte.
É o problema de muitos árbitros portugueses: passam a vida a olhar para o VAR, mas nunca viram um filme de Kubrick.
Sim, Villas-Boas é diferente de Pinto da Costa. O antigo presidente lia poesia. Sabia de cor versos de José Régio ou António Nobre e tinha alma de cronista.
Já o atual líder dos dragões é um cinéfilo de gosto apurado e fã confesso de lavagens cerebrais em Dolby Surround.
O FC Porto está a querer mudar e a apresentar-se como uma espécie de guardião moral do futebol português.
Trocaram-se os poemas de amor por storyboards.
O cheiro a enxofre por ecrãs de 4K.
E os conselhos matrimoniais por relatórios do árbitro.
Mas no fundo, pouco mudou.
Só o estilo.
Antes era teatro de revista.
Agora é streaming.
Que não restem dúvidas: André Villas-Boas é diferente de Pinto da Costa.
Mais elegante, mais contido, mais moderno.
Um homem do cinema, à frente do seu tempo.
E atrás de uma televisão que não se desliga.