João Félix: há algo de errado que não está certo
Algo de errado não está certo. É assim que gostamos de o dizer entre nós desde que nos conhecemos — uma verdade lapaliciana que faz mais sentido quanto menos sentido o mundo parece fazer. E é assim que penso em João Félix. Deu errado, mas isso não pode estar certo. Ou será que está?
É cada vez mais difícil escrever sobre o João. A cada palavra afastamo-nos de um destino que deveria ter sido grandioso, o mesmo que ele próprio teima em renegar a cada decisão. Escrevi-o há poucas semanas e repito: João Félix jogaria sempre na minha equipa. Só que a probabilidade de ele a escolhesse seria nula.
Não sou de criticar decisões. Nem todas são fáceis e se tomamos uma difícil então temos de saber viver com ela. Sempre que era para virar à direita, seguiu pela esquerda. Quando era para acelerar em frente inverteu a marcha. De cada que se pensava que não podia ser pior, o bom do Murphy temeu pela Lei que, por infelicidade, terá inventado. Dizemo-lo nós e devemos mesmo ter razão.
Não consigo imaginar que alguém que vê o que poucos vislumbram sequer em campo cegue por completo fora dele. Ou então, decidiram e confiou, suportando o engano, quando se apercebeu, no canto mais escuro da sala. Se resolveram por ele, se assinou em cruz, percebo porque falhou. Para vingar, é preciso saber dizer não. Ou um nim que seja.
O que mais me irrita são todos os sem-noção que festejam cada travessia no deserto. Aqueles de vistas curtas que nunca encontraram o talento atrás da camisola que odeiam e, mesmo que não a use há muito tempo, não conseguem esquecer. Quantas vezes repetiram que nunca o acharam nada de especial, que foram só seis meses, que não convence desde a Luz, que lhe falta atitude, que precisa de imitar Ronaldo ou um treinador que o ponha na linha? Simeone, o tal que não é culpado, falhou, Conceição falhou. Será que JJ vai acertar? Se tudo na vida fosse tão fácil…
O futebol corre-lhe rápido nas veias, mais do que a qualquer outro. Cada jogo que faz parece saído de uma pelada com amigos.
Muitos olham agora para Cholo e dão-lhe razão. Mas, sem Félix, o Atleti nunca foi espetacular e poucas vezes foi realmente ganhador. Investiu muitos mais milhões e continuou a desperdiçar talento. Pode não ser culpado pelo português, porém os que o sublinham deveriam assistir a vários jogos por dia dos colchoneros, ao estilo Laranja Mecânica, de fórceps nos olhos, a segurá-los bem abertos para não escaparem da agonia. Do horror.
Muitos falharam, mas o primeiro a fazê-lo foi o Atlético, que pagou por um novo Ronaldo ou novo Messi, não percebendo que aquele que lhe ia chegar às mãos não era um líder. Muito menos um saído de um desses moldes. Falharam todos os que não perceberam que tinham falhado. O Chelsea, o Barcelona, o Milan, o próprio João.
Era irreverência, confiança, mas não aglutinador. Essa personalidade nunca a teve. Ser líder não é só levar a equipa às costas. É suportar o peso das derrotas, encarar o mundo com fome de vitória, com raiva se necessário. Félix vive numa realidade paralela. Uma em que só ele consegue entrar.
Hoje, no entanto, o Atlético, que talvez tenha sido a única vez em que realmente não teve escolha, porque não poderia estragar o negócio ao Benfica, já tem de ser passado. Tal como todos os outros.
O Chelsea era uma casa em ruínas, sem treinador a sério, sem plano, sem rumo. Foi expulso na estreia por ser agressivo demais, quem diria? Marcou alguns golos, assinou uma ou outra assistência, mas deixou sobretudo pormenores. Promessas. Talvez a maior oportunidade desperdiçada tenha sido o Barcelona, porém também nessa altura Xavi andava confuso. Nunca se percebeu bem o que queria. E acabou arrastado pela corrente. Seguiu-se um Milan em estado de sítio, com Sérgio Conceição a não deixa pedra sobre pedra por todo o San Siro. Tem desculpas se quiser, mas já ninguém as quer já ouvir.
A carreira de Félix, como a imaginámos, acabou. Podemos negá-lo, empurrar a ideia com a barriga para a frente, lembrar que ainda tem tempo. Todas as decisões levaram-no até aqui. O seu deserto pode ser literal ou figurado: pode durar dois anos, quatro ou ser eterno. Contudo, mesmo que regresse, será sempre outro. O de 2019 fez-nos sonhar. O de 2025 obriga-nos a lamentar: ‘Porquê, meu Deus, porquê?' Há algo de errado que não está certo. Há talento e escolhas que não se entendem. E há carreiras que, quando se torcem cedo demais, ficam marcadas para sempre.
Félix escolheu a Arábia. O Al-Nassr do Ronaldo-exemplo e do Jesus-mentor. Até pode haver ali algum plano, mas não é isso que está em causa. É o contexto, o momento, o sinal que se dá ao mundo. Aos 25 anos, quando ainda devia querer conquistar a Europa e o resto do planeta, Félix escolhe o exílio dourado. Pode ganhar títulos, pode marcar golos, mas os poucos que o quiserem ver desde a Europa vão olhar com um dedo esticado e um eu avisei na ponta da língua. Será sempre uma outra versão, que não ao escapou ao paradoxo: para ser competitivo, terá de se rodear de menor competitividade. E o problema é que isso parece servir-lhe.
Talvez o problema seja nosso. Talvez tenhamos visto nele um líder quando era apenas um jovem esteta sonhador. Talvez tenhamos feito dele bandeira de uma geração que não quis representar. Alguém que simplesmente se queria divertir sempre que o mandavam entrar em campo. Alguém a quem esqueceram de retirar o rótulo.
Um outro sonhador diria: talvez ainda volte. Talvez o deserto lhe mostre a sede de ser mais, de ser tudo aquilo que deveria ser. Não acredito. Ele próprio já terá desistido e é apenas uma promessa à deriva. Um talento perdido nas próprias escolhas. Um malabarista a fazer truques no deserto, distraindo-nos dos pregadores. Um prodígio que se esqueceu do caminho de volta.
E uma história que, por mais que custe dizê-lo, parece estar a fechar-se. Sem clímax. Sem final feliz. E não se livrará de uma pergunta que o acompanhará para sempre: como é que algo certo deu tão errado?