De Martínez a Ancelotti
Com o sorteio, o Mundial já começou. E com o Brasil entre os favoritos, como sempre, e Portugal também, o que não é tão costume.
Portugal tem uma boa seleção, ótima até, mas não tem uma equipa. No quadrangular final da Liga das Nações ameaçou tê-la relativamente bem arrumada, apesar de João Neves, um dos melhores médios do mundo, ter sido despromovido a lateral-direito, mas, pelo menos, o onze era percetível ao senso comum. De então para cá, Roberto Martínez, com a sua já lendária tentação para complicar o simples, perdeu-a outra vez.
O selecionador nacional é como aqueles realizadores de cinema, que, com bons atores, ótimos até, fazem filmes apenas mais ou menos, por excesso de abstração, de intelectualização, de intangibilidade ou, em suma, de pedantismo. Na ânsia de ser conceptual, de ser autoral, Martínez torna-se, no fim das contas, surreal, mas sem o brilhantismo do compatriota catalão Dalí.
Muitas vezes, do nada, o nosso Godard das quatro linhas substitui um central por um lateral, coloca um esquerdino no meio, encaixa um destro na ponta canhota, experimenta um ambidestro à direita. Depois, mete o Nélson Semedo, desvia o Cancelo, coloca o Diogo Dalot a jogar de cabeça para baixo, faz entrar o Semedo outra vez (não dá ideia de que o jogador do Fenerbahçe entra e sai várias vezes no jogo como se fosse um andebolista?), num delírio tático permanente que tem o mérito de confundir os adversários — e o demérito de baralhar, sobretudo, a própria equipa, os narradores, os comentadores, os adeptos.
Que vá, pelo menos, ganhando mais do que perde...
O Brasil, pelo contrário, contratou um pragmático para o banco. Talvez por isso, Carlo Ancelotti tenha mais títulos ganhos na unha do dedo mindinho do que Martínez no corpo todo, do calcanhar à calva.
Em tempo recorde, o italiano construiu um onze, com ideias diretas, tão diretas como uma comédia de Totó ou uma opera buffa de Donizetti: montou uma espinha dorsal, Alisson-Marquinhos-Gabriel Magalhães-Casemiro-Bruno Guimarães-Estêvão-Raphinha-Vinícius, com veteranos e jovens, os primeiros para dar estabilidade aos segundos, os segundos para revigorar os primeiros.
E aposta em muita organização atrás e muita pressão na frente, num estilo despretensioso, despojado e, no entanto, moderno, atual, eficiente, com a sofisticação natural que só as coisas simples atingem.
Ancelotti recebeu um puzzle de mil peças e começou a montá-lo da forma mais fácil, os cantinhos primeiro, as retas a seguir e por aí adiante. Esse aí adiante, claro, ainda está por acertar porque Carletto, ao contrário de Lionel Scaloni, na Argentina, ou de Luis de la Fuente, na Espanha, não tem a obra pronta.
Já Martínez parece andar ainda à procura dos cantinhos.