Crescimento da comunidade indiana e paquistanesa em terras lusas proporcionou que modalidade saísse da obscuridade. Ainda assim, até as principais potências lutam pelas condições mais básicas para competir

À boleia da imigração, cricket reclama lugar à mesa no desporto português

Pela mão da comunidade paquistanesa e indiana, a modalidade escapa da obscuridade, apesar da escassez de uma das condições básicas para a prática de qualquer desporto: campos de treino e de jogo

Para muitos, domingo é dia de fuga à velocidade supersónica característica da semana. No feriado de qualquer preocupação, num oásis verde com vista para uma das zonas com maior densidade populacional na periferia lisboeta, a tradição mistura-se com uma era emergente.  

 Durante cerca de duas horas, um dos campos de futebol do Parque das Artes e do Desporto na Amadora torna-se no centro de treinos do Malo Cricket Club. A estranheza inicial dos transeuntes perante uma modalidade desconhecida pelo português comum contrasta com a concentração de mais de uma dezena de atletas de uma das potências do cricket luso. Face à pausa do campeonato, o domingo serve para afinar lançamentos e tacadas.  

Entre um grupo de lançadores camuflados pelo uniforme azul interrompido pela cor verde do símbolo do clube, Asim Sarwar destaca-se pela altura e velocidade. Ao contrário dos colegas, não abdicou de uma manhã de trabalho para jogar, mas interrompeu a razão que o colocou na rota de Portugal para não perder o jeito na modalidade que pratica desde sempre. 

Asim Sarwar em entrevista a A BOLA (André Carvalho)

Em 2021, contra as próprias expetativas, o atleta de origem paquistanesa abandonou o sul do continente Asiático para rumar a Lisboa à boleia de uma bolsa de doutoramento: «Antes de me candidatar nunca tinha ouvido o nome de Portugal. No Paquistão conhecem o país só por causa do Cristiano Ronaldo. Mas o meu foco era conseguir uma bolsa completamente financiada, onde pudesse continuar os estudos sem ter de me preocupar.» 

O ISCTE respondeu às preces de Asim, que deixou a família em solo paquistanês para iniciar um doutoramento em gestão, com especialização em marketing. Apesar de ter direito a uma bolsa de estudo totalmente financiada, ainda havia um nó por desfazer na cabeça do doutorando antes da primeira viagem para Lisboa: «Estava muito preocupado porque não sabia se conseguiria jogar cricket. Joguei durante 11 anos no Paquistão, na escola e na universidade.»  

Cricket é composto por lançadores e batedores (André Carvalho)

A década de experiência acumulada na terra natal refletia o sonho profissional de criança, transformado em hobby em nome da estabilidade: «No Paquistão todos sonham ser internacionais um dia.  Mas tinha de desistir. O meu pai é engenheiro, o meu irmão também. Tinha sempre de ter um canudo na mão para ter uma vida melhor.» Ainda assim, Asim explicou que nunca abdicou de jogar entre os intervalos do estudo « para aproveitar a vida».  

Para garantir que o cricket seria o escape da pressão académica, o jovem paquistanês colocou mãos à obra e explorou a realidade da modalidade antes de abandonar a terra natal: « Pesquisei nas redes sociais se jogavam cricket em Portugal e quantas equipas havia. Descobri que nos últimos anos muitos imigrantes tinham vindo para cá e que jogavam. Foi a minha sorte.»  

Para o sonho entrar basta alguém abrir a porta 

Na demanda por uma casa portuguesa para continuar a desenvolver o amor pelo o cricket, Asim cruzou-se com Mian Shahid, capitão do Malo CC: «Foi muito gentil e disse-me que quando fosse para Portugal, contactava-me para conversarmos. Tenho jogado regularmente no clube nos últimos quatro anos e tem sido uma experiência muito boa.»  

Ao contrário de Asim, conhecedor exímio da língua inglesa, mas novato no dialeto luso, Mian impressiona pela fluidez na língua de Camões. Atualmente com 45 anos, o empresário assentou arraiais em Portugal há quase duas décadas. «Saí do Paquistão com 26 anos para Espanha em 2006. Estava lá o meu irmão e trabalhei com ele. Em 2007 vim para Portugal. Não foi fácil para mim» admitiu, recordando os primeiros tempos como trabalhador no setor da construção civil.   

Mian totalmente equipado (André Carvalho)

Ainda assim, um simples dia de trabalho mudaria a vida profissional e desportiva de Mian: «Estava a trabalhar com o meu primo e fomos fazer um trabalho para a Malo Clinic. Fui lá e o dono, o doutor Paulo, gostou do meu trabalho e contratou-me.»  

A parceria deu frutos e precipitou a criação do Malo CC, em 2014, numa altura em que cricket era a antítese total da definição clássica de profissionalismo: «Havia liga mas muito fraquinha, não havia regras nem organização, no país todo havia seis equipas. Agora temos oito na primeira liga e 13 na segunda. Quando comecei, Portugal estava fora do top 100 do ranking [do Conselho internacional de Cricket], atualmente estamos em 42.º»  

A procura que é mais dolorosa do que uma dor de dentes

 O crescimento da liga de cricket portuguesa, organizada a cada seis meses pelo rede europeia de cricket, confunde-se com a hegemonia do Malo, nove vezes campeão desde 2014. «Como não conhecia ninguém em Portugal falei com o doutor Paulo e ele ajudou. Falou com o advogado e tratou da legalização da equipa» recorda, Shahid, responsável pela equipa dentro e fora do campo. 

A equipa do Malo CC (Malo CC)

«Recrutamos palavra a palavra. Ainda não conseguimos ajudar os jogadores financeiramente. O meu interesse é salvar a nossa comunidade da droga e de outros problemas. Quando têm esse tempo livre, vêm aqui e jogam. Somos muito unidos. É uma forma de escape» explica, entre pausas para descansar enquanto o treino prossegue sob o olhar atento de Paulo Malo.  

A infância passada na África do Sul fomentou uma paixão pelo cricket, abandonada quando rumou a Portugal para criar um império de clínicas dentárias A amizade firmada com Shahid precipitou a reativação de um amor antigo. Já reformado da competição, Paulo destaca o papel da comunidade indiana e paquistanesa na evolução da modalidade: «Ficámos com um nível técnico bastante bom.»  

Ainda assim, para o empresário, odesenvolvimento organizacional da modalidade não acompanhou a evolução na qualidade de jogo:  «Estes jogadores pagam para jogar. Todos têm que se deslocar, partilham o dinheiro da gasolina e das refeições. Há jogadores bons que não conseguimos manter porque preferem trabalhar ao fim-de-semana para ganhar dinheiro.» 

O amadorismo da modalidade reflete-se não só na ausência de salário, mas também pela escassez de infraestruturas. Apesar da primeira liga lusa contar com oito equipas com sede no distrito de Lisboa, o campo mais próximo criado para a prática da modalidade situa-se a cerca de 90 quilómetros de distância, em Santarém. 

O Malo Cricket treina-se num campo de alcatrão (André Carvalho)

Face à inexistência de um campo de relva dotado das melhores condições para treinar e jogar, qualquer ensaio para as competições é realizado no alcatrão com vista para a periferia de Lisboa. As grades laterais evitam que a bola, cujo tamanho não traduz o enorme peso que afigura, não fuja da vista dos atletas e encontre inadvertidamente qualquer transeunte curioso. 

Ainda assim, Paulo Malo avisa que a altura das redes não impede a existência de acidentes: «Até é um bocado perigoso porque se estiverem pessoas a passear aqui no parque, podem ir parar ao hospital. Bastava colocar uma rede no topo. É super simples.» 

Para que a bola não fuja, um jogador fica sempre no exterior do campo (André Carvalho)

«Na zona de Lisboa há várias equipas. a cidade já merecia um campo de cricket que todos partilhassem. Bastava um campo para satisfazer as necessidades que temos. Como é um desporto que não tem visibilidade, as autoridades municipais não percebem» lamentou, destacando ainda a dificuldade dos atletas de se adaptar à dicotomia de pisos: jogam na relva, mas treinam no alcatrão. 

Mian partilha a mesma queixa do antigo patrão e destaca os pedidos já endereçados à Câmara Municipal de Odivelas, até ao momento sem qualquer resposta. Enquanto capitão de equipa, o atleta de 46 anos é o responsável por gerir o plantel presente em cada jogo e coordenar a viagem até Santarém para disputar cada jornada do campeonato. 

«Todas as quintas-feiras pergunto quem que está disponível para jogo de domingo. Mediante as respostas, escolhemos uma equipa de 12 jogadores, 11 titulares e um suplente. Normalmente vão 3 carros, cada um com 4 jogadores, mais equipamentos» explica, destacando ainda a falta de promoção de modalidade. 

Já Asim, apologista da criação de um novo campo, exalta a dificuldade em adquirir equipamento: «Há uma grande diferença entre aceder a infraestruturas e a material em Portugal e no Paquistão e a Índia, há uma grande diferença. Demora muito tempo para chegar e o preço é muito alto.»  

Seja na relva de Santarém ou no alcatrão de Lisboa, o cricket evolui em solo luso à boleia de quem chama casa a Portugal à procura das melhores condições de vida, mas sem se esquecer das raízes. 

Pode ler a segunda parte desta reportagem aqui