Unidos também na dor
João Neves no Benfica-Sporting (IMAGO/Atlantico Press)

Unidos também na dor

OPINIÃO22.02.202413:37

O grande problema da humanidade não está na bondade, está na memória... 'Livro do Desassossego', por Jorge Pessoa e Silva

Há pessoas de quem gostamos ao primeiro olhar. Ainda não sabemos nada dessa pessoa e já preenchemos todos os vazios com um sentimento de simpatia que nos gera. Pessoas que nem precisam de uma primeira oportunidade para causar uma primeira boa impressão. Basta aparecer. João Neves é uma dessas pessoas.

A primeira vez que reparei nele aconteceu a 11 de dezembro de 2022, num jogo particular do Benfica com o Sevilha, em Faro. Ao minuto 76, Roger Schmidt promove a estreia de João Neves na equipa principal. Vi em João Neves um miúdo com cara de miúdo… Todo aprumadinho, com a camisola por dentro dos calções. À antiga... E, acima de tudo, vi no rosto um prazer imenso de, finalmente, ter autorização para brincar no seu parque de diversões favorito. E esse ar pueril, sonhador até, fez-me gostar mesmo daquele miúdo muito antes de gostar do futebolista.

Não fui só eu que me rendi ao miúdo com cara de miúdo transbordando felicidade por brincar no parque de diversões favorito. Os adeptos do Benfica também. A mais monumental assobiadela dos adeptos a um treinador do Benfica aconteceu num jogo em que Roger Schmidt decide tirar João Neves de campo. Aquela assobiadela não é proporcional ao juízo tático e desportivo que os adeptos fizeram da saída de João Neves. A razão tinha de ir muito além disso. E porque os adeptos podem não ter sempre razão, mas têm sempre emoção, aquela assobiadela foi um veemente protesto emocional. Os adeptos vestindo o papel de um pai babado que está feliz por ver o filho feliz a brincar no parque de diversões favorito, de onde foi retirado pelo insensível do Roger Schmidt. Deixa jogar o miúdo...

O menino João Neves está agora de luto pela morte da mãe, Sara Gonçalves. E se a morte é a mais universal das experiências humanas, o luto é um processo individual. C. S. Lewis, escritor inglês do século XX, escreveu que «o luto não é um estado, é um processo». O luto é também o preço do amor, um preço mais alto para quem mais ama.

Morrer é o contrário de nascer, não é o contrário de viver. E viver é o milagre da imortalidade semeada no coração de todos os que foram tocados por nós. É por isso que é possível viver mesmo depois da morte. Uma vida depurada e transformada em exemplos.

Falo de experiência feita: perdi o meu pai aos 21 anos. Não fixei nenhuma conversa séria que tenhamos tido. Mas lembro todos os pequenos e grandes exemplos do dia a dia. Não poderia ter tido melhor professor sobre como ser um Homem e como amar uma mulher. Fosse eu tão brilhante aluno como ele foi meu professor…

A João Neves vai faltar o telefonema para Sara no final de cada jogo. Há um vazio enorme para preencher, mas antes há que esvaziar tudo. Talvez um dia se lembre e passe até pelo Poço Vaz Varela, à saída da sua Tavira, e se inspire na lenda para desejar dois figos e receber dois bordões de ouro de uma moura encantada.

Há momentos em que as palavras nada acrescentam. Passei pelo mesmo que João Neves, mas não tenho a veleidade de saber o que ele está a passar e do que está a precisar. Talvez apenas de quem chore sentado ao lado dele. Só espero que a dor e a injustiça não lhe roubem a cara de menino a brincar no seu parque de diversões favorito.

Professor chamado avô

Há pessoas que nada nos dizem ao primeiro olhar. Cujo semblante não conseguimos perscrutar . António Silva foi uma delas.

A primeira vez que lhe pus os olhos em cima foi ao minuto 7 do jogo do Benfica no Bessa, com o Boavista, a 27 de agosto de 2022. Aos 18 anos foi lançado ao onze do Benfica por, numa série de infortúnios, não haver mais opções para jogar no eixo da defesa. Só ele e Morato. Ao minuto 7, dizia eu, uma entrada em falso valeu-lhe o amarelo. A idade, inexperiência e esse amarelo eram os ingredientes para um potencial desastre. Mas António Silva teve mais 83 minutos para provar que não só é um central de eleição, como tem enorme personalidade. Não tremeu e comandou algo mais difícil do que a defesa do Benfica, comandou as próprias emoções. E, mais tarde, a forma como cresceu para jogadores de nomeada em jogos Champions fez-me ver que «temos homem».

Também António Silva está de luto pela morte do avô. Também ele tem de passar por esse processo sempre singular que é o luto. Ironia negra do destino: até no luto partilha a dor com um dos melhores amigos: João Neves.

O meu avô, com quem vivi desde os cinco anos, também garantiu a imortalidade. Ainda hoje o oiço a contar histórias dos livros que leu, da tradição oral ou do que a imaginação lhe ditava. Foi ele quem me inspirou para a leitura e o prazer de ouvir e contar uma boa história. Não poderia ser jornalista sem esses dois ingredientes. Numa sociedade de descarte, um dos conselhos que dou aos pais preocupados em dar uma boa educação aos filhos é que promovam o convívio com os avós.

Bravo, meu caro Pedro

Bonito o gesto de Pedro Gonçalves na zona de entrevistas rápidas após o jogo com o Moreirense. Antes mesmo de responder à primeira pergunta, fez questão de revelar solidariedade, em nome de todo o plantel do Sporting, com João Neves e António Silva. Para mais, percebemos pelas declarações posteriores de Rúben Amorim, uma mensagem não planeada, logo genuína. Para mim a prova de duas convicções: que os jogadores são do melhor que o futebol tem e que o ser humano, na hora de aflição, é genuinamente solidário.

Falando genericamente, não propriamente deste caso, sempre defendi, meio a brincar meio a sério, que acredito profundamente na bondade do ser humano. Mas não acredito na sua memória. As situações limites ou mais dramáticas trazem ao de cima o que de melhor somos. Passado o perigo ou atenuada a dor, a humanidade entra em estado de amnésia e volta às guerrinhas estúpidas de todos os dias.

Sempre acreditei que ser má pessoa dá muito trabalho. Ninguém é mau o suficiente para não ser tombado por outra pessoa má. Há sempre uma esquina traiçoeira. E ser mau é uma péssima gestão do pouco tempo que temos disponível.

Os bons trocaram o ter pelo ser. Trocaram o presente pelo futuro. Trocaram a posse pela memória. Os bons são os que decidem ser felizes. Felicidade que não advém de fatores externos mas daquele sentimento único de olharmos ao espelho e sentirmos orgulho e paz.

Um abraço para o João e o António.