Elas e eles
ONTEM foi um dia histórico para o desporto: a Federação de Futebol dos Estados Unidos da América tornou-se a primeira no mundo a garantir igualdade nos salários e prémios para futebolistas masculinos e femininos. Foi uma luta de vários anos de jogadoras e de todos aqueles que, independentemente do género, lutavam pela paridade. É uma decisão que chega num contexto muito especial naquele país, onde paira a ameaça de regressão de alguns direitos fundamentais.
O futuro dirá quão rápido será o contágio desta medida para a restante comunidade desportiva, mas convém lembrar que se havia país onde isto poderia acontecer, é os Estados Unidos. Por uma razão muito objetiva: elas são melhores que eles. As americanas lideram o ranking FIFA, eles ocupam o 15.º (mas já estiveram muito mais abaixo); os jogos delas geram maiores audiências televisivas que os deles; os jogos delas têm mais espectadores; o público americano que gosta do soccer sabe que, num Mundial, elas vão para vencer (já o fizeram em quatro ocasiões), enquanto eles vão para tentar milagres como o que fizeram em 2002 quando venceram Portugal. É verdade que as seleções masculinas recebem dez vezes mais mais dinheiro da FIFA que as femininas nas participações em Campeonatos do Mundo (foram distribuídos €382 milhões pelas 32 seleções no certame masculino da Rússia, em 2018, e €29 milhões pelas 24 seleções na competição feminina em 2019, em França) mas a federação norte-americana estava condenada a aplicar a justiça.
Não será fácil replicar de imediato o conceito na Europa, ainda que, tal como tantos outros avanços que decorreram no passado, seja expectável que esse passo venha a ser dado nas democracias liberais do Norte do Velho Continente. Demore o tempo que demorar, há no entanto um imperativo em marcha que é visível, felizmente, também em Portugal: fazer crescer o futebol feminino. Não por simples moda ou mettooismo, mas porque esta modalidade serve de barómetro civilizacional. Não será coincidência: entre as 20 melhores seleções do ranking FIFA, 13 pertencem a países que ocupam as 20 primeiras posições do Índice de Desenvolvimento Humano, monitorizado pela ONU (que cruza variáveis como a riqueza, educação, expectativa de vida à nascença, natalidade, PIB, etc). E os que não estão nesse top-20 são países como a França, Espanha, Itália ou Coreia do Sul. Ter mais mulheres a competir e a jogar melhor é um ganho dentro dos campos mas fundamentalmente um sinal que nos indica para onde vamos enquanto sociedade e país.
O recente recorde de assistência no dérbi realizado no Estádio da Luz entre Benfica e Sporting (14.221 espectadores) é a prova de que o crescimento está a ser feito de forma sustentada, mas que, por muito meritório que seja o trabalho da Federação Portuguesa de Futebol, é a força dos clubes que arrasta multidões. Tal como aconteceu com o futsal há quase duas décadas, foi a entrada dos grandes (Benfica e Sporting) que deu um impulso gigantesco à modalidade. No futebol feminino, a rivalidade entre leões e águias agita as águas - e como seria bom que o FC Porto também entrasse desta vez na onda. Se vemos assistências com mais de 60, 70 e 80 mil pessoas nos estádios da vizinha Espanha em jogos de futebol feminino é porque em campo estão mulheres do Real Madrid, Barcelona, Atlético Madrid ou Athletic Bilbao.
Há uma tendência ainda natural (e contra mim falo) de encarar um jogo de futebol feminino com o comparador permanentemente ligado: olhamos para 22 jogadoras no relvado e exigimos que façam o mesmo que os homens. As guarda-redes ainda revelam muitas carências e levam-nos a olhar com desconfiança para muitos golos marcados, mesmo na elite da Liga dos Campeões. Mas depois assistimos a defesas como a da keeper do Benfica, Katelin Talbert, ao penálti da leoa Joana Marchão e pensamos que afinal é tudo uma questão de esperar pela melhor oportunidade e dar o devido espaço para o amadurecimento. Porque se vermos este desporto com outros olhos deparamo-nos com uma espécie de regresso ao passado: não estando ainda tão industrializado, o futebol feminino transmite aquela pureza do jogo que todos amámos um dia.