Treinador desvenda um pouco de como é o dia a dia em Henan, uma província com 100 milhões de habitantes

Daniel Ramos: «Aqui na China temos o hábito de jantar às seis da tarde»

Destino Aventura é a rubrica de A BOLA que lhe dá a conhecer gente ligada ao futebol espalhada pelos quatro cantos do mundo. Desta vez é um treinador com vasta experiência que nos conta como é a vida num país ancestral

Daniel Ramos está desde abril nos chineses do Henan. Em termos desportivos já conseguiu a manutenção e o apuramento para a final da Taça da China e está a gostar muito da vida social num sítio tão longínquo da sua Vila do Conde natal, mais concretamente 12.251, 17 km.

— Como está a correr esta experiência na China?

— Está a correr bem. Felizmente foi uma boa aposta, por várias razões. Principalmente pelo plano desportivo: os resultados têm ajudado. O objetivo do clube, quando entrei, era claramente atingir a manutenção, porque estávamos numa situação difícil e agora já há algum tempo que a garantimos. E para além disso ainda conseguimos um extra, o de irmos à final da Taça da China.

— Como é viver por essas paragens?

­— Uma surpresa pela positiva. Vinha preparado para o lado cultural: as diferenças, a alimentação também. Informei-me com pessoas que já cá tinham estado a perceber o que iria encontrar. E elas falaram-me muito bem. Foi um dos motivos por ter vindo, foi ter opiniões muito válidas em relação àquilo que é o dia-a-dia de viver cá e o nível futebolístico do país. E viver na China acaba por ser uma agradável surpresa. Felizmente, estou numa boa cidade.

— Como se chama a cidade?

— Zhengzou.

— É uma cidade da província de Henan?

— É. E é uma cidade que não é das maiores, mas tem 12 milhões de habitantes. A província tem 100 milhões de habitantes.

A cidade onde vivo não é das maiores mas tem 12 milhões de habitantes. A província de Henan 100 milhões

— Imagino que o trânsito seja caótico...

­— Sim, é verdade. Mas eu e a minha equipa técnica, bem como 90 por cento do plantel, vivemos num condomínio bastante agradável. Cada um tem a sua habitação. Aqui mesmo em frente temos a restauração variada. E o dia-a-dia acaba por ser bastante agradável, muitas vezes em convívio uns com os outros. E isso ajuda a passar o dia, porque sabemos também que com a ausência da família é importante nós interagirmos e irmos passando o tempo. Isso é muito bom. Portanto, uma cidade agradável, que nos acolheu bem. Somos bem recebidos. E isso foi outro aspecto positivo, que é perceber que existe muita recetividade. Nós também somos frontais, diretos e amistosos, e o sentimento é recíproco. E essa boa relação entre o staff foi algo que o clube nos apontou como também potenciadores dessa melhoria. E melhorámos muito esse lado.

Daniel Ramos no mítico templo de Shaolin (Foto DR)

— No o dia-a-dia sentem-se muitas restrições inerentes ao regime chinês? E a que níveis?

— Não, não muito. Temos a nossa forma de operar e acabamos por contornar uma ou outra dificuldade. Na primeira, segunda semana precisámos de nos adaptar a esta realidade, com alguns aspetos que não são tão habituais na Europa, mas facilmente isso foi ultrapassado.

— Já trabalhou na Arábia Saudita, que também tem um regime austero. É muito diferente?

­— Bastante diferente. Tive a sorte de vir para aqui na China para uma cidade muito maior do que aquela que estava na Arábia Saudita, com outro tipo de condições a todos os níveis, principalmente a nível da habitação. A nível da restauração temos muitas opções e isso ajuda bastante porque, como é sabido, também a China é típica no paladar, no picante que existe nalguns pratos. Mas temos opções e conseguimos também optar e dizer que, na escolha dos pratos, podemos dizer que queremos sem picante ou com redução. Na Arábia Saudita, comparado em termos gerais, aquilo que eu notei mais acabou por ser, se calhar, um bocadinho mais de distanciamento e menos afetividade, menos proximidade.

— Os sauditas são mais sobranceiros?

— Sim, acho que não sou tão apaixonados, por exemplo, pelo futebol como são aqui os chineses. Apesar de termos sido bem recebidos e de termos boas amizades lá, são um bocadinho mais afastados. Faltou mais tempo, se calhar, para serem mais próximos. E eu aqui senti que rapidamente fomos aceites e rapidamente fazemos parte da família.

— Já comeu coisas esquisitas aí na China?

— Procuro evitar, principalmente por fugir aos picantes, fugir a algumas coisas que não conheço tão bem, pelo menos nos primeiros tempos. Não quer dizer que à frente não o prove, mas para já, até por questões de nos mantermos aqui também sem problemas gástricos e tudo mais, não quis muito correr esse risco, mas não tenho problema, nem nenhum de nós da equipa técnica, para já, teve nenhum problema a esse nível.

Daniel Ramos já um ícone, também, em termos digitais (Foto DR)

— Qual o hábito chinês que mais estranhou?

­— Ligado ao futebol?

— Não, ao quotidiano em si...

— Cada um tem as suas rotinas, mas principalmente no dia-a-dia, existe, pelo menos ao nível do futebol, aquela ideia de que o treinar de manhã é mais difícil do que treinar à tarde, pelos hábitos, porque a predisposição para treinar à tarde é superior ao treinar de manhã, então evitamos treinar de manhã, no sentido de dar mais descanso aos jogadores. Isso ao acontece com os vários clubes. Também aqui a preferência de treinar da parte da tarde e ao contrário de Portugal, que treinávamos quase sempre de manhã. Além disso, as refeições aqui são feitas muito cedo. Por exemplo, jantamos às seis da tarde.

— Porquê?

— É um bocadinho cultural também, nós treinamos cedo e jantamos cedo. Acaba por ser um pouco isso. É um bocadinho normal.

— Há mais hábitos pouco usuais?

— A tradição do chá é muito presente. Culturalmente vê-se chá em todo lado. Outra coisa: em todo o sítio que vamos há sempre água gratuita. Agora, no inverno, até vem morna. Às vezes com sabor a limão. Ou seja, muitas vezes nós fazemos a refeição e quem bebe água já não tem de a pedir. Além disso, em termos de futebol, em todos os jogos, no início, toca-se o hino da China e no final todas as equipas se cumprimentam no centro do relvado. No fundo, são culturas diferentes...

— Como é a convivência dos chineses com os estrangeiros?

— No clube existe uma excelente relação entre os estrangeiros e os chineses. Todos se respeitam. Tanto é que vamos para uma deslocação para jogo e os brasileiros metem música brasileira no autocarro e é perfeitamente aceite pelos chineses. No balneário ouv-es música brasileira, portuguesa, o que quer que seja.

— Tem cinco brasileiros no plantel?

— Não, quatro brasileiros e um ganês. Mas também temos um fisioterapeuta espanhol e um psicólogo brasileiro. É um mix de países.

— Os chineses já falam outras línguas?

— Há uma coisa que aprenderam connosco: ‘o vamos’ ‘vamos!’ O ‘vamos’ é obrigatório. Para eles aqui o 'jia you’. O ‘jia you’ é o nosso vamos. Todos os dias temos um grito no início do treino. Escolho um jogador e esse jogador diz ‘renan’. Não é ‘Henan’, é ‘Renan’. Pronuncia-se como se fosse um beijo . E ‘ jia you!’ Toda a gente grita: ‘jia you!, vamos’. Muitas vezes no balneário eles já dizem ‘vamos’. E os próprios adeptos também o dizem: ‘vamos!’ Quando me cumprimentam já é: ‘mister, mister, vamos! vamos!'

— Tem tradutor?

— Sim, tenho. Aliás, temos quatro no clube. Dois deles falam português. Os outros falam inglês. Traduzem de inglês para mandarim. Isto funciona porque existe um tradutor para a equipa técnica e outro para os brasileiros. São tradutores permanentes que nos acompanham. Também vivem também aqui no hotel.

—Em dezembro vai disputar a final da Taça da China. Será o ponto mais alto da sua carreira?

— Olhando para um grande troféu, sim. Mas vendo outros feitos, diria que há outros títulos também de grande importância na minha carreira. Por exemplo, já fui campeão nacional da Liga 2 ao serviço da União da Madeira. E tenho várias subidas de divisão que também são muito importantes. E alguns apuramentos europeus. E, muitos não saberão, a disputa de uma supertaça na Arábia Saudita. E agora tenho uma final de uma taça que esperamos vencer porque essa final dá apuramento para Champions asiática. Será a primeira vez na história do clube que estará numa final da Taça. E também, primeira vez, se o conseguir, jogar uma Liga dos Campeões.

Olhando para um grande troféu, a disputa da final da Taça da China é o ponto alto da minha carreira

— Como é que está o desenvolvimento do futebol na China?

— Há uns anos a China estava num nível muito alto. Investiram muito, mas isso caiu. Depois, com o Covid mais ainda. E neste momento o que sinto é que se está a reerguer. Houve vários clubes a passar por muitas dificuldades e outros a acabar. Há também uma franja que ainda está a pagar um bocadinho esse preço. Mas o governo ajudou bastante. Tanto é que há muitos clubes apoiados pelo governo. O nosso é um deles. Há empresas do governo que ajudam. Aliás, em vários emblemas da China isso acontece. É no sentido de equilibrar um o futebol profissional e essa ajuda tem sido muito importante. Houve um conjunto de regras que foram implementadas para o controlo orçamental. Por exemplo, existem tetos salariais e máximos de prémios. E há uma disciplina muito para que os ordenados e orçamentos sejam controlados e cumpridos. Isso é muito bom porque dá garantia aos profissionais que aqui estão. Porque toda a gente, como é óbvio, quer receber o que tem direito.