A rapariga que eu vi...

O que o Rafa, o Otávio, o Nuno Santos (ou o João Neves), têm a ver com uma tarde triste na Azinhaga dos Alfinetes (e não só...)

QUANDO há muito, muito tempo (sim, já lá vai muito, muito tempo...) entrei para A BOLA um dos privilégios que eu senti num ápice não foi apenas ter entrado para A BOLA (que esse foi e há de ser sempre o principal!) - foi desatar a ouvir (deliciado) as histórias do Chefe (do Chefe Vítor Santos) e de uma delas tirei marca para a vida do jornalista que sonhava ser (e jamais a esquecerei). Foi essa em que o Chefe me contou que, indo fazer a crónica do Oriental, a escrevera da primeira à última em palavras a crescerem de azedume e acrimónia. Que o jogo fora sem brilho e sem golos. Que os jogadores eram sem jeito e sem alma. Que, no fundo, fora tudo um desconcerto e um desconsolo - desconsolo como a tarde fria e chuvosa na Azinhaga dos Alfinetes (de pelado enlameado - e corpos encharcados de águas e mágoas). E que, sem sequer chegar ao último linguado (sim, já era assim que se chamava às folhas manuscritas que se encaminhavam para a tipografia), Cândido de Oliveira lhe atirara, brusco, a pergunta:

— … mas não conseguiste ver nada, mesmo nada, um ínfimo pormenor que fosse, de bom —  num jogo inteiro? Nem sequer uma rapariga jeitosa por lá, no peão ou na bancada?

e o silêncio da resposta do Chefe, cortou— o o Mestre Cândido com o que era, solene, a sua sentença:

—  … é que num jogo todo de futebol não pode haver apenas coisas más, só coisas assim tão más! Mas mais, nunca te esqueças que no futebol e nos jornais o mais importante é sempre dizer— se a verdade, mas partindo de uma atitude de simpatia!

Naquele instante em que o Chefe o recordava (tão deliciado como eu, ouvindo— o…) decidi (sem, obviamente, lho confessar): essa há de ser a regra para mim!  Não, não deixou de ser —  e, por isso, é que, olhando para um jogo de futebol (ou para a vida) o que eu ainda procuro sempre é a rapariga jeitosa por lá, no peão ou na bancada. Foi o que aconteceu, uma vez mais, claro, nos últimos dias (e há continuar a acontecer) —  o que eu vi acima de tudo foi a rapariga jeitosa por lá, no peão e na bancada, fechando os olhos a tudo o mais: correrias, tropelias, mentiras, vídeos, insultos, pontapés, multas, expulsões, perseguições, comentários moralistas e hipócritas...

Por isso, para mim, importante foi ter visto a rapariga jeitosa por lá, no peão ou na bancada —  no modo como vi o Rafa a destralhar o seu jogo (e o jogo da sua equipa) daquilo que ele pudesse ter de espúrio, transformando, depois, com os pés em fogo (e a alma a arder— lhe) o que vinham sendo becos sem saída na linha de horizonte por onde chegou, perspicaz e lesto, ao golo —  ao golo que pode valer ao Benfica muito mais do que uma vitória sobre o SC Braga.

Por isso, para mim, importante foi ter visto a rapariga jeitosa por lá, no peão ou na bancada —  no modo como vi o Nuno Santos a tirar do seu coração quente (e ousado) o subtil (e provocador) golpe de génio — naquele chapéu que é, como todos os chapéus, metáfora perfeita no sinal e no espírito do jogo em convite à festa feita de pés em flor. Ou a metáfora perfeita no sinal e no espírito do jogo em esplendores que são os fogos de artifício que se vão soltando, radiantes, de que o joga assim —  bom malandro (e bom malicioso…)

Por isso, para mim, importante foi ter visto a rapariga jeitosa por lá, no peão ou na bancada —  no modo como eu vi o Otávio, extraindo mais veleidade de menos desconcerto, extraindo mais argúcia de menos negrume, evitando que a sua equipa se perdesse na casmurrice e no ridículo do seu encalhado jogo. Ou ainda mais no modo como o vi (ao contrário de quase todos os outros companheiros, mesmo que não parecesse…) a procurar a baliza do Arouca sem ir por atalhos ou sem se perder em complicações, rompendo, de fogacho em fogacho, com aquilo que era o jogo rotineiro e chato (de quase todos os outros —  e da equipa) —  e fazendo, por fim, com classe e perspicácia, com furor e fulgor, com que a bola lhe saísse do pé pela mão de um deus invisível a caminho da cabeça do Marcano para o golo que não deixou que se apagasse o sonho ao Dragão… 

Sim, em várias outras circunstâncias, por vários outros campos, importante, para mim, foi ter visto a rapariga jeitosa por lá, no peão ou na bancada —  e não podia deixar de dizer que já não é só a rapariga jeitosa por lá, no peão e na bancada que eu vejo quando vejo o João Neves —  a jogar à Modric. A  jogar à Modric —  jogando a fazer jogar, jogando a ligar, cada vez mais impecável, o jogo da equipa. A jogar a fugir da complicação ou do disparate, despojando— se de frivolidades e estultícias. A jogar a fechar espaços com a cabeça esperta do geómetra. E a abri— los assim também sem rodriguinhos —  para colocar a equipa o mais depressa possível no ataque (de forma furtiva ou venenosa) mostrando que, nele, como no Modric, um passe atinado é sempre mais importante que um drible tolo...