Duarte Gomes: «A arbitragem já não pode viver no tempo da lei da rolha»
— Quais são exatamente as funções de um Diretor Técnico Nacional de Arbitragem?
— As funções são novas e significam, na prática, uma mudança de paradigma em relação ao que vem sendo feito na arbitragem há décadas. As competências técnicas foram separadas das competências de gestão e das competências políticas. O Conselho de Arbitragem, que neste caso é liderado por Luciano Gonçalves, fica com a área de responsabilidade mais de gestão — as nomeações, as classificações, as questões regulamentares, a criação de quadros, relacionamento institucional — e a parte da Direção Técnica, que eu tenho agora o prazer de liderar, fica, diria, com a parte mais terrena, de campo, o treino, a preparação, a estratégia, a uniformização de regras, o recrutamento de novos árbitros, a deteção de talento, tudo isto obviamente num projeto que demora o seu tempo. Em três ciclos, 12 anos, o que queremos é ter mais árbitros, mais qualidade para escolhermos melhores árbitros e melhores desempenhos. É um desafio muito grande, mas que seguramente, com o tempo, conseguiremos cumprir.
— Considera que havia um vazio, ou um excesso de funções das mesmas pessoas, no anterior modelo?
— Sim, parece-me que havia um acumular de funções prejudicial para as próprias pessoas. O formador era também o diretor que nomeava e isso, até em termos de relacionamento pessoal, poderia criar algumas dificuldades na gestão dos árbitros. Esta separação vem, primeiro: clarificar funções; segundo: dotar a direção técnica de competências suficientes para trabalhar em exclusivo naquilo que é importante desse ponto de vista, que é o desempenho dos árbitros, a sua melhoria de qualidade, a sua aprendizagem técnica diária, constante, sistematizada e, acima de tudo, uniformizada de Norte a Sul, da base ao topo.
— A quem responde o diretor técnico na estrutura atual?
— O meu contrato é com a Federação Portuguesa de Futebol. De qualquer forma, há um alinhamento total com as diretrizes do Conselho de Arbitragem, com o Luciano Gonçalves, a tal gestão política, digamos assim. Todo o trabalho que é feito na direção técnica é partilhado semanalmente, diria até diariamente, com o Conselho de Arbitragem, onde, em simbiose, traçamos as linhas comuns para os nossos desafios.
— Falou em três ciclos de 12 anos, mas por agora fechava um pouco a questão: para os primeiros quatro anos da atual direção da FPF, qual é o seu plano e quais são os objetivos principais?
— Eu diria que, nesta fase, o mais importante é a inteligência de perceber qual é o contexto, fazer o diagnóstico. Quero perceber ao certo quantos árbitros temos no país todo, quantos estão em cada uma das 22 associações distritais. O país desportivo é composto por 22 conselhos de arbitragem, que fazem, aliás, um trabalho absolutamente fantástico, muitas vezes com grandes dificuldades. Quero saber de quantos árbitros precisamos, que estratégias podemos utilizar para termos mais árbitros e, mais importante ainda, de que forma os podemos formar, dar-lhes qualificações para se tornarem bons árbitros e evitar que saiam. Este é também um fenómeno muito preocupante, a saída prematura de muitos jovens. Não conseguimos ainda perceber como podemos agarrá-los nesta causa. Diria que o grande projeto nestes quatro anos é, claramente, recrutar mais, reter mais e trabalhar melhor a qualidade.
— Como se cativam jovens para esta atividade?
— Não é um desafio fácil. Sou pai de uma criança de 15 anos e seria um pai preocupado se a minha filha enveredasse pela arbitragem, devo dizer isto. Por outro lado, deixe-me começar por um cliché, e só é cliché porque é verdadeiro: não conheço nenhum jovem árbitro que seja delinquente, toxicodependente ou que tenha enveredado por maus caminhos. Ou seja, a arbitragem é uma escola de boas influências. Porquê? Porque pressupõe treinos desportivos, pressupõe uma dedicação a um compromisso, a um objetivo, pressupõe um estilo de vida muito saudável, com cuidados alimentares, com responsabilidades muito grandes na própria função, com metas bem definidas em relação à ascensão. Se nós conseguirmos cativar os jovens a partir dos 14 anos, que é a idade mínima para ingressar na arbitragem, e conseguirmos convencê-los, a eles e aos seus pais, que esta é uma carreira que pode retirá-los de outras alternativas menos positivas e sedutoras nestas idades já temos aqui um bom argumento.
— Tendo em conta essa argumentação por que começou por dizer não ficar tranquilo se a sua filha for árbitra?
— Essencialmente por questões relacionadas com a segurança, que nós também temos que trabalhar, e por questões relacionadas com aquela que, neste momento, é a imagem pública da arbitragem. A perceção que existe, que é de facto negativa e temos de assumir de uma forma clara. Os árbitros não são os heróis da festa, portanto é preciso criar aqui um olhar diferente para a arbitragem, valorizar mais a carreira do árbitro no topo, uma alternativa muito válida a quem, por exemplo, está no futebol e não tem talento para chegar àquela pequena fatia de craques que se tornam profissionais. É um caminho alternativo que pode ter uma carreira, agora também como árbitro assistente ou videoárbitro. Já são carreiras separadas, podem ser aliciantes. Tentar seduzir por aí e, lá está, pela questão da segurança, que é um pensamento maior, a envolver também o poder político. Queremos poder dizer a esses pais e a essas crianças, a esses jovens, que arbitrar é um desporto seguro, uma atividade segura, independentemente do ruído exterior e das emoções exacerbadas. Uma atividade segura que queremos potenciar cada vez mais.
— Já lá vamos. Deixe-me perguntar-lhe uma coisa muito prática: é a favor da realização de jogos sem árbitro, como sucede por esse país fora em alguns escalões mais jovens?
— De todo! São exceções que existem em alguns conselhos de arbitragem, o que, obviamente, evidencia desde logo a dificuldade do recrutamento e da retenção de que muitos deles padecem quotidianamente. Mas é a antítese do que queremos. O jogo de futebol pressupõe equipas, treinadores, árbitros e adeptos, para ser um espetáculo entusiasmante, divertido, entretido e ter a competição balizada com regras justas. Quando um conselho de arbitragem, infelizmente, se vê privado de nomear árbitros para certos jogos, nomeadamente dos escalões mais jovens, por manifesta falta de recursos humanos, temos aqui um problema muito grave que temos que detetar e, lá está, resolver, de preferência já nos primeiros quatro anos.
— O futsal também tem esse nível de preocupação, calculo…
— Tem, e também está nesta nossa grande consideração de direção técnica, faz parte das nossas incumbências. Temos um projeto que queremos muito aplicar no futsal a médio e longo prazo, para potenciá-lo ainda mais como modalidade e, no caso da arbitragem, para trazer mais jovens para essa categoria, seduzindo, por exemplo, os jovens talentos do futsal que acabam por não ter qualidade suficiente para serem profissionais ou internacionais. Há formas pensadas de o fazer, vamos tentar organizar ideias e potenciá-las com o tempo.
— Considera que a especialização da carreira do VAR vai diminuir o número de erros?
— Acima de tudo vai dar ao árbitro a tranquilidade que queremos que ele tenha, que é o foco total no campo. Até agora os árbitros dividiam as suas funções entre sala e campo, onde as competências exigidas são completamente diferentes. Dirigir jogos no terreno, com a condição física sempre a ser aplicada, com o esforço, com o cansaço, com a pressão momentânea dos lances, é completamente diferente de estar numa sala em que as competências exigidas são a concentração, o foco, a análise muito bem feita das imagens e o conhecimento técnico do protocolo. Eles mudavam esse chip de sábado para domingo, de domingo para segunda, e para alguns não foi fácil essa adaptação. Percebemos isso através de alguns erros que conseguimos detetar e percebemos que eram evitáveis. Portanto, queríamos especializar esta função, como especializámos em tempos a do árbitro assistente. Esse é o caminho certo, porque quem está mais focado apenas numa área vai seguramente treiná-la muito melhor, para depois poder ter melhores desempenhos.
— A aplicação é imediata ou vai haver fase de transição?
— É imediata. Esta é uma alteração regulamentar que foi prevista já para a próxima época, que já começou em termos teóricos e que, desportivamente, começa com a Supertaça. A partir desta época desportiva já há exclusividade de funções. Tem os três quadros de videoárbitros, que estarão em rotação de seis em seis meses, porque também eles terão um processo classificativo autónomo. Vão ter observadores específicos, os chamados visionadores, e uma carreira própria que também dependerá de desempenhos para se estar no topo ou não. Isso é um aliciante para aumentar o foco, a concentração e a ambição de terem melhores desempenhos.
— Serão igualmente profissionais?
— Estarão enquadrados no regime profissional, sim. Na verdade, os árbitros do nosso sistema profissional ainda não são de todo profissionais. É um caminho que está a ser feito e é um dos nossos grandes objetivos, com certeza.
— O quadro de árbitros profissionais pode alargar-se nos próximos anos?
— Sim, pode alargar-se, embora não seja do nosso interesse termos muitos, apenas os suficientes para garantir que as competições são feitas de forma adequada e com os desempenhos que queremos.
— Ainda voltando à questão do VAR: os árbitros receberam bem esta novidade? No fundo acabam por perder rendimentos, porque cada jogo, presumo, é remunerado…
— Certo. É um exercício muito difícil. Todos nós, também eles, temos famílias para gerir e os rendimentos financeiros são um retorno muito importante para o equilíbrio emocional, logo para melhorar os seus desempenhos. Mas aceitaram bem esta mudança no sentido em que percebem que a arbitragem não é um fim, é um meio — o meio de garantir que os jogos tenham boas decisões e que o jogo tenha verdade desportiva. Os árbitros estão dispostos a aceitar tudo o que possa melhorar a qualidade do jogo, e para nós é muito claro que esta separação e esta especialização faziam todo o sentido rumo a melhores desempenhos. E eles, de facto, tiveram um fair play fantástico, encaixaram muito bem esta alteração e alguns deles, inclusive, saudando-a, porque numa ou noutra área podem especializar-se naquilo que mais gostam.
— Saberá como poucos sobre isto: a mediatização da arbitragem, afinal, beneficia ou prejudica a arbitragem e, por consequência, o futebol?
— Depende do que se entende por mediatização. Se estamos a falar de escrutínios de lances que são passados de forma repetida e que lançam depois o ruído exterior, é negativa. É um protagonismo que dispensamos. O que nós somos apologistas, e vamos querer muito marcar essa diferença durante estes próximos 12 anos, e, repito, falo pela direção técnica em simbiose com as orientações já traçadas pelo Conselho de Arbitragem, é termos uma comunicação muito mais ativa, mais transparente e mais aberta. A arbitragem já não pode viver, permita-me a expressão, na lei da rolha em que sempre foi acusada de viver, e com alguma razão. Houve uma altura em que o silêncio era a melhor resposta. O Collina [um dos mais conceituados árbitros de sempre e atual responsável pela arbitragem da FIFA] costumava dizer que a melhor entrevista é aquela que não se dá. Mas estes são outros tempos, tempos da informação imediata, tempos do rumor, da verdade de perceção. É importante termos a capacidade de controlar e dominar a nossa comunicação e, de facto, mostrarmos às pessoas, à imprensa, aos adeptos, aos clubes, aos comentadores, seja a quem for, que a nossa forma de trabalhar é absolutamente clara, honesta e íntegra, rumo aos melhores desempenhos possíveis.
— Isso poderia passar por os próprios árbitros falarem mais em público?
— Isso irá passar também por os próprios árbitros falarem. Irá passar por um conjunto de programas que estão pensados em televisão para esclarecimento de lances, entre os quais haverá erros e haverá acertos, numa vertente obviamente pedagógica, para detetarmos o que é que aconteceu de errado e como é que podemos trabalhar, a forma como tentamos resolvê-los, humanizando muito a figura do árbitro enquanto pessoa que também tem a sua família, também quer proteger os seus, tem os seus quotidianos, quer muito acertar, quer muito ter jogos bem arbitrados para não estar sujeito, depois, a semanas de corrosão absolutamente incríveis, que muitas vezes escapam até à opinião pública e afetam a sua própria integridade, há ameaças à família etc. Queremos dar o passo em frente. Estamos cientes de que não iremos agradar a toda a gente e estamos sempre à distância de um penálti mal assinalado, mas pelo menos não seremos acusados de não ter aberto as portas e não ter, ativamente, dado o passo rumo a este tipo de comunicação que queremos mais aberta.
— Esse programa televisivo já está estruturado, já está pensado, já se sabe a periodicidade, por exemplo?
— Está pensado, está estruturado, está em fase final de discussão, é para aplicar no princípio da época. Seguramente será do agrado do adepto, da imprensa e das pessoas, porque de uma forma muito aberta, muito tranquila e transparente, vamos comentar os lances que sejam de comentar, nomeadamente aqueles sobre os quais percebamos que a opinião pública mais quer ouvir o esclarecimento, de uma forma absolutamente descontraída, sejam decisões corretas ou incorretas, e sempre numa perspetiva de percebermos como é que podemos evitar que os erros se repitam.
— É o Duarte que vai apresentar esse programa?
— É uma das ideias que está em cima da mesa, mas não está fechada.
— Existe realmente, como se diz, uma crise de qualidade dos árbitros portugueses?
— Está diretamente relacionada com uma crise de quantidade, e voltamos ao tema do recrutamento e da retenção. Nós temos neste momento, no ativo, 4.400 árbitros, num universo de 5.400. Números grosso modo, são os mesmos que tínhamos há 30 anos. Repare, em 30 anos, o número de competições que cresceram, o número de federados que surgiram, a forma como o futebol evoluiu e nós, 30 anos depois, temos o mesmo número de árbitros. Algo está muito errado. Está errado na forma como não estamos a vender a ideia de que a arbitragem é sedutora ou, então, na forma como não estamos a conseguir reter os árbitros. E este é, diria, o foco macro da direção técnica: percebermos como podemos recrutar mais, manter mais árbitros ao longo do tempo. Acompanhá-los melhor, seduzi-los melhor, para depois termos, no topo, a possibilidade de escolher melhores árbitros. E, por exemplo, para um dérbi qualquer não termos um ou dois, mas cinco ou seis árbitros possíveis. E para finais europeias não termos meia aposta, ou nenhuma, mas duas ou três hipóteses de assumirmos finais europeias.
— Prevê ações específicas para as mulheres, pode aumentar o número de árbitras?
— As mulheres árbitras têm tido um acompanhamento muito próximo, já do anterior Conselho de Arbitragem, da anterior direção, honra seja feita, e nós iremos manter um programa de continuidade muito grande em relação às senhoras que arbitram. Que têm essa coragem, também elas sujeitas, em termos de opinião pública, a muitas dificuldades em termos de imposição da sua tarefa. Têm feito um trabalho absolutamente notável, são corajosas, dedicadas, comprometidas e, acima de tudo, também já perceberam aquilo que, na verdade, sempre foi o que quiseram: a igualdade de género é para aplicar-se, de facto. Isto é um processo de meritocracia e, portanto, seja mulher ou homem, desde que tenha qualidade terá oportunidades e singrará até chegar ao topo.
— Podemos deduzir que vai ser mais comum ver árbitras nas competições profissionais.?
— Cada vez mais comum, assim elas, como eles, provem que têm mérito para isso.
— Na formação de árbitros dá-se mais ênfase ao aspeto técnico ou à gestão emocional? Ou a ambos?
— Dá-se mais ênfase ao aspeto técnico, mas a gestão emocional começa a ser cada vez mais importante e será, connosco, muito mais importante. De facto, e é uma excelente questão, como diria Manuel Sérgio, há o treinador e há o homem que treina, há o jogador e há o homem que joga, há o árbitro e há o homem que arbitra. E nós não podemos desconsiderar estas duas variáveis, porque elas são convergentes de forma indelével, ou seja, temos de tecnicamente, fisicamente, teoricamente preparar o árbitro para a sua função de arbitrar, mas emocionalmente, mentalmente, prepará-lo também para a tarefa. E a tarefa é gerir 22 homens que estão cansados, que têm objetivos diferentes, que estão sob grande pressão, até mesmo, muitas vezes, contratual, ou para manter um lugar no onze, para mostrar talento. Alguns deles muito jovens e, portanto, com menos maturidade, com mais impulsividade e é preciso ser um árbitro gestor, eu diria quase psicólogo, para ter a capacidade, em alta competição, de aplicar as regras com a sensatez que se pretende a este nível. Há algum trabalho a fazer e nós estamos muito cientes disso.
— Como é que se consegue combater os episódios de violência que são recorrentes, nomeadamente em jogos de escalões jovens, distritais, etc., embora vão ocorrendo um pouco por todo lado?
— É uma grande preocupação que nós temos. Infelizmente, esses episódios são crescentes ao longo dos últimos anos. Diria que consegue combater-se de duas formas e com duas intervenções — o antes e o depois. No antes estamos a falar de prevenção, ações de sensibilização, cada vez mais pedagogia junto das escolas, dos clubes, dos pais, dos adeptos, insistir na questão das boas práticas, dos valores. Tentar, através da pedagogia, apelar ao bom senso, à contenção de emoções. Excesso de emocionalidade é aceitável, mas irracionalidade não é, porque resvala, lá está, para patamares que nós não queremos. Mas, muitas vezes, essa ação antes do acontecimento não funciona. E aí a punição tem que ser exemplar. Porque a punição, quando é exemplar, é também uma mensagem pedagógica que vai diluir a repetição do ato.
— E não tem sido?
— Eu acho que o casamento das duas não é perfeito e que há muito a fazer nessa matéria.
— E aí precisará de intervenção governativa…
— Daí as duas intervenções em termos disciplinares. No caso, por exemplo, da Liga, são os clubes que fazem o seu próprio regulamento disciplinar. Mas diria, acima de tudo, que o poder político tem de ter mão mais musculada nesta fase do posterior. Porque se a sanção demora muito tempo, e é leve, não é dissuasora. É quase um convite à repetição. Temos de pensar muito bem nisto. Não é apenas a agressão física em si: no caso dos jovens que são agredidos — e não são apenas árbitros, também treinadores e, muitas vezes, jogadores e adeptos — é também o trauma que isso deixa em jovens e que os faz, lá está, abandonar as carreiras.
— Será possível educar uma nova geração de dirigentes, que está claramente a surgir, ou a arbitragem vai acabar por ser sempre o primeiro bode expiatório para os insucessos?
— É possível educar pela via do diálogo, da abertura e transparência de processos, pela comunicação constante e, acima de tudo, pela formação. Até há bem pouco tempo os dirigentes eram os únicos agentes desportivos que não eram formados. Com todo o respeito, o senhor mais rico da aldeia, o construtor civil, a pessoa mais notória da cidade, era a pessoa que se poderia candidatar, e ainda pode, seguramente, ou que tinha mais dinheiro e ia investir num clube e, portanto, entrava sem filtros. O árbitro faz o seu curso, o treinador faz o seu curso, tão dificultado, como nós sabemos, para chegar ao topo. O jogador faz o seu percurso da formação até ao topo. Todos os agentes desportivos têm uma formação de base, exceto os dirigentes. Agora, felizmente, isso está a ser esbatido com programas, que a Federação já começou a criar, de formação de dirigentes. Estou crente de que esta nova geração de dirigentes, muito mais arejada também, próxima do futebol de uma forma mais racional, estará disposta a fazer esse esforço para que saiba, obviamente, criticar, não gostar dos desempenhos e exigir responsabilidades, mas filtrar essa crítica de tudo o que é, depois, detrator e pode levar à violência.
— Duas perguntas numa: é mais apreciador de uma arbitragem que deixa correr o jogo ou de uma arbitragem mais interventiva? Há indicações neste sentido para os árbitros ou eles têm, no fundo, a liberdade de agir, desde que dentro das regras, com o estilo que mais se lhes adequa?
— Eu sou apreciador das arbitragens que tenham bons desempenhos e os bons desempenhos, muitas vezes, conseguem-se com mais faltas e, muitas vezes, com menos faltas. Não gosto de carimbos porque eles, muitas vezes, incentivam a caminhos que contrariam a verdade desportiva. Se eu disser a um árbitro «quero que marques muito poucas faltas», seguramente estou a convidá-lo a não marcar infrações leves que existem e não estou a fazer um favor à verdade desportiva. Se eu disser que quero muita intervenção, estou não só a prejudicar a qualidade do jogo, como também a dizer que ele poderá estar a marcar faltas que, na verdade, são apenas contactos não faltosos. O que eu quero é que cada árbitro, em cada jogo, perceba em que jogo é que está, que tipo de jogo é que poderá ter pela frente e qual é a estratégia que ele tem de usar para garantir que, no final do jogo, fez uma excelente arbitragem, aplicando as regras e, se possível, contribuindo para mais tempo útil de jogo. E há formas de contribuir sem ser pela via do apito. Quero árbitros inteligentes, que percebam do jogo, que tenham a sensatez de perceber o contexto. O exemplo é simples: se eu for a um casamento, vou vestido de determinada forma, se for amanhã à praia, vou de outra forma. Sou a mesma pessoa, mas estou num ambiente diferente e tenho de me adaptar ao ambiente em que estou. Os árbitros têm de fazer este exercício em relação ao tipo de jogos que enfrentam.
— À parte da condição física, o treino, a atualização de conhecimentos, quanto tempo gasta, entre aspas, um árbitro para preparar um jogo?
— Um árbitro, sobretudo do topo — mas atenção que muitos não profissionais já o fazem de forma brilhante, mesmo nos escalões nacionais e até distritais — tem um trabalho que eu diria que é quase full-time. Entre os treinos físicos, que são diários, às vezes bidiários, as questões mais emocionais, que também podem ser tratadas com profissionais nessa matéria, questões de recuperação física dos pós-jogos, questões de preparação para o jogo e scouting, que é um processo absolutamente fundamental, do qual não vamos prescindir. Queremos que eles preparem os jogos. É tão importante para os árbitros perceberem o jogo que vão enfrentar, as equipas, os jogadores que vão ter pela frente, o estádio, o ambiente, os espectadores, a meteorologia, como é para as equipas terem esse conhecimento antes de enfrentarem os seus adversários. Isto é profissionalismo no comportamento, é preparação, é antecipação de cenários que muitas vezes acontecem durante o próprio jogo e eles próprios dizem «ainda bem que falámos sobre isto, que veio mesmo a acontecer». O jogador que é mais rápido, o jogador que protesta mais, a forma como a equipa defende, a forma como a equipa ataca, as bolas paradas, o relvado mais baixo ou mais alto, se chove, se está frio ou se está calor, o tipo de adepto, o histórico das equipas, a rivalidade…
— Há muita troca de informação entre os árbitros em relação a essas matérias?
— Há essa partilha de informação que é importante. «Arbitrei este jogo na semana passada, atenção que aconteceu isto e aquilo, o público costuma ser assim ou assado, os bancos técnicos são mais ou menos pressionantes» Este tipo de informação não vai condicionar o árbitro num determinado sentido, não é isso que se pretende. Pretende-se informação que ele possa usar a seu favor para o processo de decisão. Se eu for para um jogo sem saber rigorosamente nada não sou um árbitro preparado para aquele jogo, vou ser reativo. Não queremos árbitros reativos, que arbitram, apitam e dão cartões. Queremos árbitros que antecipem, que leiam o jogo, que falem com os jogadores, que antevejam as jogadas, que tenham capacidade de gerir os lances antes de eles acontecerem. E são esses que geralmente acabam os jogos com menos faltas, menos cartões e sem qualquer polémica.
— O seu projeto kick-off vai ser interrompido ou vai prosseguir com essa parte pedagógica, digamos assim, daquilo que tem sido o seu percurso?
— É uma das minhas grandes dúvidas, que tenho de alinhar, obviamente, com o departamento de comunicação da Federação. É um projeto que me é muito caro. Lancei-o em 2017, hoje tenho 250 mil seguidores, de uma forma sempre orgânica, com um conteúdo muito explicativo e esclarecedor. Mas neste momento desempenho funções específicas na Federação Portuguesa de Futebol e há aqui momentos de colisão que não quero ultrapassar. Portanto, o projeto está em pausa neste momento. Custa-me muito dizer que vou suspendê-lo, porque não o quero fazer. Vamos ver se conseguimos fazer algo que aproveite o público-alvo, que já lá está, para tentarmos manter esta nossa linha, que é a linha da pedagogia e da explicação de lances.
— Para finalizar: há pouco fiz-lhe a pergunta sobre a primeira parte deste seu projeto. Em poucas palavras, o que é que gostaria de estar aqui sentado a dizer dentro de 12 anos?
— Gostaria de dizer que temos o triplo dos árbitros, que é, de facto, o nosso objetivo no contexto do Plano Nacional de Arbitragem. Essa é a nossa referência, a nossa Bíblia. Queremos o triplo do número de árbitros porque queremos ter muito mais quantidade, para depois termos qualidade na primeira liga, no topo. Queremos ter os melhores no topo. E, desse topo, lançar para as competições europeias muitos árbitros que possam, de facto, chegar aos patamares a que chegaram Vítor Pereira, Olegário Benquerença, Lucílio Baptista e Pedro Proença, sobretudo estes, com finais europeias. Queremos que a arbitragem portuguesa tenha uma identidade da base ao topo. Que haja uniformidade entre aquilo que faz um jovem de 14 anos em Bragança e o que faz agora o João Pinheiro num jogo da Champions League. Os mesmos critérios, as mesmas orientações, o mesmo tipo de trabalho, para que possamos dizer: «Quando pegámos nisto, a realidade era uma, saímos com a sensação de que deixamos a nossa casa muito melhor.»
— Quando falamos do triplo, falamos em número a rondar os 15 mil...
— O número a rondar os 15 mil é uma referência, que também terá de ser adequada à realidade competitiva. Quantas competições teremos na altura, quantos atletas teremos na altura e, perante essas competições, qual é a necessidade real de árbitros. O que não queremos é árbitros a fazer 6, 7 e 8 jogos por fim de semana. Porque isso, de facto, é muito extenuante. Retira-lhes qualidade para o desempenho. E, acima de tudo, é absolutamente impossível manter um jovem árbitro se lhe dizemos, aos16 anos, que vai fazer 4 ou 5 jogos, deixa de ter tempo para a namorada, para o namorado, para ir ao cinema, para estudar, para a faculdade. Sobretudo a esses, temos de os poupar muito, valorizando o resto da vida que eles têm de saborear. Para isso, precisamos de quantidade.