«Não temos ainda afastado o risco de haver um boicote pró-Ucrânia aos Jogos de Paris»
José Manuel Constantino, presidente do COP, é o convidado do Conselho de Estádio

ENTREVISTA A BOLA «Não temos ainda afastado o risco de haver um boicote pró-Ucrânia aos Jogos de Paris»

A BOLA TV05.03.202410:00

José Manuel Constantino, presidente do COP, é o convidado do Conselho de Estádio

O Conselho de Estádio tem como convidado José Manuel Constantino, 73 anos, presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) desde 2013, estando agora no último mandato, e antigo líder do Instituto Nacional do Desporto e da Confederação do Desporto de Portugal.

- Falando dos Jogos Olímpicos, há um tema particularmente sensível, que tem a ver, basicamente, com a discussão cada vez mais intensa sobre a presença de atletas, ou, neste caso, a ausência, de atletas da Rússia e da Bielorússia na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. No início, parecia haver um pensamento consensual sobre o afastamento desses atletas, considerando que isso poderia, de alguma maneira, ajudar à causa e ao pensamento ocidental. Neste momento, surgem cada vez mais inquietações, sobretudo nas pessoas que pensam a questão do Desporto, meditando sobre se o movimento olímpico deve alinhar pela visão do poder político, ou se, pelo contrário, no Desporto deve haver uma separação das águas, mais no sentido da paz e no sentido da unidade universal. Qual é a sua posição sobre esta questão?

- A minha tese é a de que o Desporto deveria ter sido capaz de fazer uma separação de águas entre aquilo que são as dinâmicas de caráter político e aquilo que é a autonomia do movimento desportivo. Isto não foi possível, e criou-se uma baralhação total com o Comité Olímpico Internacional (COI), que na minha leitura teve um posicionamento ziguezagueante, sem uma visão estruturada e consolidada relativamente a esta matéria. Existem 208 Comités Olímpicos nos vários países e aquilo que se passa com a generalidade dos Comités Olímpicos europeus e com alguns países que os acompanham, como a Austrália ou os Estados Unidos, não se passa com a generalidade dos outros Comités Olímpicos, alguns situados em zonas do globo muito dependentes das esferas de influência política pró-Rússia. Por isso, as decisões do COI têm que levar em atenção que o mundo olímpico não é apenas o mundo ocidental. O COI começou por banir a participação de quaisquer atletas com origem na Bielorússia e na Rússia, e depois, por força do movimento de algumas federações desportivas internacionais, e de alguns Comités Olímpicos nacionais muito poderosos, infletiu esta posição para a que hoje se conhece, que é de que, caso as federações desportivas internacionais não levantem objeções, os atletas russos e bielorrussos poderão participar, de uma forma inócua, sem bandeira e sem reconhecimento do país de origem, assumindo que não participaram na guerra e que não estão a favor da guerra. Enfim, não sei como é que isto vai acabar... Temo que cheguemos aos Jogos de Paris com o problema mal resolvido.

- Mas esta solução, que não é peixe nem é carne, não será um mal menor face à possibilidade de haver um boicote a Paris, como vimos em 1976, dos africanos, em 1980, do bloco ocidental, e em 1984, do bloco soviético?

-  Nós não temos afastado o risco de poder haver um boicote aos Jogos Olímpicos, por parte dos países ocidentais que alinham com a Ucrânia,  caso o posicionamento do Comité Olímpico Internacional vá num sentido que a Ucrânia não aceite. Ou seja, eu não afasto de todo a possibilidade de poder haver, por parte de alguns países, um boicote aos Jogos de Paris.

- Mesmo sendo a França, que tem apoiado a Ucrânia?

- Mesmo sendo a França. O Vítor começou por dizer que os Jogos em Paris são jogos que envolvem algum fascínio, pela envolvência simbólica, cultural, política, desportiva, histórica, enfim. Mas são um enorme ponto de interrogação. Há problemas de mobilidade e já sugeriram que os atletas se deslocassem de metro, porque por cima não se anda. E há a questão da segurança, porque muita da contestação em Paris vem de movimentos inorgânicos, que são mais difíceis de controlar. É possível comprar o sossego? Fala-se com quem?  Negocia-se com quem? No Brasil sabia-se quem eram os líderes, e foi possível acordar que naquele período havia tréguas. Aqui quem são?

- Em Barcelona-92 negociaram com a ETA para não haver problemas nenhuns durante os jogos.

- Os jogos Olímpicos são uma loucura completa em termos de logística, muito mais complexos a nível de organização do que qualquer outro grande evento desportivo internacional. São 17 dias em que se disputam as fases finais de todas as modalidades do mundo. As pessoas muitas vezes não têm noção do gigantismo dos Jogos Olímpicos.

- Está no seu último mandato, que ponto da situação faz desta sua liderança? Sente orgulho, neste momento, desta sua presidência do Comité Olímpico de Portugal?

- Nestas coisas, o importante é como se termina, e eu ainda não terminei. É isso que fica mais na memória das pessoas. As coisas podem correr muito bem, depois vêm os Jogos de Paris e podem alterar-se. Tenho a noção de que há uma diferença entre a realidade e a perceção. Portanto, essa avaliação só é feita no final. Tem sido um ciclo difícil, até por razões de natureza pessoal, mas também porque este ciclo é completamente distinto dos anteriores, não são quatro anos, são só três, haverá menos atletas e os critérios de apuramento para a participação nos Jogos alteraram-se de forma muito significativa em algumas modalidades-chave. A mais relevante é o atletismo, porque tem a ver com a marca, mas também tem a ver com a posição no ranking. Só vamos poder fechar os apuramentos a menos de um mês do início dos Jogos. Ou seja, a  quatro meses dos Jogos, cerca de metade da Missão está ainda por encerrar.  Neste momento, face à nossa previsão, a única modalidade onde não conseguimos atingir definitivamente o objetivo foi o futebol, para grande pena nossa, até pela qualidade que os jovens portugueses têm.

- Como sabe estive no Brasil em 2016 e a equipa que apresentámos nos Jogos foi apenas a possível, depois de 50 jogadores terem sido impedidos de participar pelos seus clubes. E os outros países, exceção feita ao Brasil, queixavam-se do mesmo. É que os Jogos Olímpicos, e creio que a maior parte das pessoas desconhece isto, não fazem parte do calendário da FIFA. Os clubes não são obrigados a libertar os jogadores… Já em relação aos seus três mandatos no COP, tem consciência que apanhou a Troika, o Covid e a guerra?

- Nunca tinha feito essa avaliação, mas é verdadeira.

- Tem a convicção de que vai entregar o COP melhor do que recebeu?

- Francamente, sim. Acho que a nossa passagem por aqui introduziu alterações positivas.  Mentiria se não reconhecesse que, globalmente, e independentemente dos resultados de Paris, o nosso trabalho foi positivo. Demos um bom contributo para o Desporto nacional e para o País.  Fizemo-lo de peito aberto, sem qualquer princípio que não fosse da boa governação, da transparência. Seguramente cometemos erros, ou podíamos ter ido por outros caminhos, fizemos tudo com um sentido de missão. Servindo o Desporto, naturalmente, mas servindo Portugal, de forma a que os portugueses possam olhar para o COP e reconhecerem esta instituição como séria, idónea, responsável e que faz tudo quanto está ao seu alcance para prestigiar o nosso País.

- Sente que o lugar que ocupa, e porque está no último mandato, é um lugar cobiçado?

- Sinto, até na sequência da relevância que o COP tem para a vida do País. Mas este já era um lugar cobiçado antes de eu cá chegar. Sempre foi um lugar apetecível e acho que vai continuar a ser. Mas há, pelo menos, claramente, um reforço daquilo que é a imagem de idoneidade, capacidade e competência do COP. Gostava que essa avaliação fosse reconhecida.

- Acha que esse trabalho e a imagem que deixa tem sido reconhecido pelo poder político?

- Não tenho razões de queixa, embora possa ter razões de divergência. Mas sempre trataram bem o Comité Olímpico de Portugal, do ponto de vista institucional, e sempre foram corretos, até, discordando com a minha pessoa. E vocês, que acompanham estas coisas, sabem que há momentos em que eu não tenho propriamente a palavra mole. Tenho uma palavra contundente, rígida. Quando eu peço um reforço da dotação financeira para o Desporto, sei que estou a pedir algo que, seguramente, os titulares da pasta também pedem. Daí a questão que levantou há pouco…

- E que retomo agora: vamos ter eleições no domingo, gostaria de ver sair desse ato eleitoral um governo, seja ele qual for, que tivesse um titular do Desporto com peso político?

- Claro. O problema não tem estado na competência das pessoas, absolutamente estimáveis e competentes. Todos os titulares têm feito tudo aquilo que está ao seu alcance para terem mais meios, para terem mais recursos, para poderem ter um outro orçamento, e lutaram até aos limites das suas capacidades de intervenção política para que as verbas disponibilizadas fossem diferentes. Agora, o posicionamento político do Desporto, no contexto da ação governativa é lateral, é meramente marginal, é pouquinho, como costumava dizer, e, portanto, não dá para mais. Houve apenas, nos últimos anos, algumas pequenas oscilações, quando o titular da pasta estava mais perto do primeiro-ministro, como foi o caso, por exemplo, de Laurentino Dias.