Rakitic: o maestro silencioso que marcou uma era
A despedida foi feita com a serenidade e a classe que sempre o definiram: através de uma carta lida por si próprio e partilhada nas redes sociais, com palavras que tocaram o coração dos adeptos - Dear football, I have a special letter for you…
Na mensagem, Rakitic revisitou os momentos mais marcantes da sua trajetória, expressando profunda gratidão por todas as experiências vividas e pelos muitos sonhos que, ao longo das últimas duas décadas, transformou em realidade.
Há jogadores cuja despedida nos custa. Rakitic nunca precisou de luzes nem de capas de super-heróis para mudar o rumo de um jogo – necessitava apenas de ter a bola nos pés. O seu futebol enchia o campo de inteligência, visão e classe. Fora dele foi sempre aquilo que todos gostamos de encontrar num atleta de topo: um exemplo. Uma referência. Um senhor do jogo e da vida.
Despede-se com uma carreira plena. Com mais de 850 jogos oficiais, mais de 100 internacionalizações, golos em finais, passes que construíram histórias e uma forma de estar que o tornou admirado tanto dentro como fora das quatro linhas. Mas acima de tudo, conquistou o coração dos que sabem ver para além do golo e do aplauso fácil. A forma de jogar - com sobriedade, eficácia e uma elegância natural - refletia o que era e é como pessoa: equilibrado, confiável, profundamente humano.
Nascido na Suíça, filho de emigrantes croatas, Rakitic começou por brilhar no Basileia. Foi lá que o futebol europeu percebeu que estava a nascer um médio diferente - sereno, tecnicista, com leitura de jogo rara para a idade. Seguiu-se o Schalke 04, na Alemanha, onde cresceu taticamente e se afirmou num futebol mais exigente fisicamente. Mas seria em Espanha, ao serviço do Sevilha, que o mundo se renderia ao seu talento - e ao seu caráter. Em Sevilha, tornou-se ídolo. Capitão. Líder. Ganhou a Liga Europa em 2014, sendo eleito o melhor jogador da final. Recordo-me bem que levantou o troféu com a braçadeira no braço e lágrimas nos olhos. Ainda hoje, Sevilha é casa. A cidade que o adotou. A cidade que o aplaude de pé, sempre. A cidade que no verão de 2011, conheceu a sua esposa Raquel Mauri, com quem casou dois anos depois. Juntos têm duas filhas: Althea e Adara.
Depois do Sevilha, chegou o Barcelona. E com ele, o desafio de suceder a lendas como Xavi. Mas Rakitic não tremeu. Fez parte de um dos trios de meio-campo mais eficientes e memoráveis da história recente do clube e do futebol mundial: Busquets, Iniesta e Rakitić. Em 2015, conquistou a Liga dos Campeões, marcando na final frente à Juventus. Um golo que abriu o caminho para o troféu. Nesse ano, o Barça de Messi, Neymar e Suárez encantava o mundo - mas era Rakitic quem segurava o equilíbrio, quem dava ordem ao talento.
No plano internacional, viveu o momento mais mágico com a camisola da Croácia no Mundial de 2018, na Rússia. Juntamente com Modric, levou a seleção até à final, com exibições sublimes e nervos de aço - como nos penáltis contra a Dinamarca e a Rússia, onde converteu os remates decisivos. Não ergueu o troféu, mas ganhou o coração de milhões. O seu nome ficou para sempre gravado entre os maiores da história do futebol croata.
Regressou onde o coração bate mais forte: Sevilha. Ainda a tempo para mais um momento de glória: a conquista da Liga Europa de 2023 – como se o futebol, num gesto de gratidão, lhe tivesse oferecido um último troféu – uma espécie de justiça poética. Depois, teve ainda tempo para uma passagem pelo Al-Shabab, na Arábia Saudita, e por fim, vestiu a camisola do Hajduk Split. Um regresso simbólico às origens, uma reconexão com as suas raízes e ter a oportunidade de jogar, pela primeira vez, no seu país.
No futebol moderno, há quem brilhe pelos golos, outros pelas assistências, e depois há os que influenciam o jogo de forma tão subtil quanto determinante. Ivan Rakitic pertence a esta última categoria. O médio croata nunca precisou de estatísticas vistosas para provar a sua importância - bastava vê-lo em campo para perceber que a sua influência ia muito além dos números. Destacou-se pela forma como resistia à pressão, encontrava soluções rápidas e distribuía o jogo com uma fluidez que dava vida ao meio-campo. Era raro vê-lo tomar uma má decisão. Considero o Ivan um verdadeiro influencer do futebol – não nas redes sociais, mas dentro das quatro linhas. Influenciava com o seu toque de bola refinado, com recuperações essenciais, passes teleguiados como se a bola tivesse olhos, remates decisivos e um entendimento tático excecional. Era um maestro do meio-campo. Unia criatividade a agressividade, intensidade a serenidade. Sabia pausar e acelerar. Desarmar e construir. Pausar quando era preciso respirar, acelerar quando a equipa precisava daquele impulso. Jogou em todas as posições do meio-campo e até nas alas. Era o equilíbrio. O pêndulo da equipa. O elo de ligação. O cérebro.
Para os colegas, era sempre uma saída segura. Um facilitador, um maestro sem batuta, um artista do coletivo. Em cada jogo, lembrava-nos que a verdadeira influência mede-se na capacidade de elevar todos os que o rodeiam. Um desses outros foi Fernando Reges, que, esta semana, partilhou comigo uma história que diz muito sobre Rakitic:
Sabemos que todos os grandes acabam por pendurar as botas, mas é uma perda enorme deixar de ver alguém como o Rakitic em campo. Foi dos jogadores com quem tive mais prazer em partilhar o campo. Tecnicamente, brilhante. Um verdadeiro líder, com uma sensatez invulgar e uma humildade rara. Tratava todos por igual, sem exceções. Fora do campo, era igual. Sempre bem-disposto, sempre com um sorriso. Uma pessoa genuína, que valorizava os pequenos gestos. Lembro-me de um episódio em Sevilha: um dia, comentou que gostava muito das minhas Havaianas, dizia que todos os brasileiros as usavam. Eu disse-lhe que lhe ia oferecer um par. Ele riu-se e respondeu: 'Mas tu agora não vais ao Brasil, como é que me vais dar isso?' E eu: 'Consigo arranjar em Portugal.' Quando fui a Portugal, comprei-as e ofereci-lhas. Ele ficou mesmo feliz. Valorizou aquele gesto de forma sincera. E eu também.
Aquelas Havaianas não foram apenas um presente. Foi respeito e amizade entre dois colegas. Há carreiras que se medem em títulos, outras em estatísticas, mas a de Rakitic mede-se sobretudo em respeito. O respeito dos adeptos, dos colegas, dos treinadores e dos adversários. Aquele respeito que não se compra, que não se pede nem se exige - conquista-se. Esse respeito é transversal. Basta ouvir o que dizem os que com ele jogaram e treinaram:
Luka Modric: Com o Rakitic ao lado, tudo era mais fácil. Sabia sempre onde estar, o que fazer, como ajudar. Mas mais do que isso: sabia ouvir, sabia unir. Foi um pilar da nossa seleção e um irmão no balneário.
Julen Lopetegui: Treinar o Rakitic é ter um treinador dentro de campo. Taticamente perfeito, emocionalmente estável, e sempre pronto a pôr o coletivo à frente do individual. São jogadores assim que constroem equipas campeãs.
Lionel Messi: O Ivan foi essencial para o que conquistámos. Era daqueles com quem sabias que podias contar em qualquer jogo, em qualquer momento. Um verdadeiro companheiro de equipa.
Unai Emery: Ele não precisava de falar alto para liderar. Bastava vê-lo treinar. Era o primeiro a chegar, o último a sair, sempre com um sorriso e um respeito inabalável por tudo o que envolve o futebol.
Cristiano Ronaldo: Enfrentá-lo nunca foi fácil. Sabia como anular espaços, como temporizar, como ferir quando era preciso. Sempre o respeitei muito.
Gerard Piqué: Dentro do balneário era um dos mais respeitados. Sempre equilibrado, sempre presente. Quando perdíamos, era ele quem chamava à razão. Quando ganhávamos, era o primeiro a lembrar que o trabalho continua.
Zlatko Dalic: Sem o Rakitic, não teríamos chegado à final do Mundial. Era o cimento invisível que colava tudo. Taticamente perfeito, emocionalmente estável, mentalmente fortíssimo.
Jorge Sampaoli: Ele era o relógio da equipa. Quando tudo parecia caótico, ele punha ordem. Não gritava. Não fazia gestos teatrais. Mas todos o seguiam.
Andrés Iniesta: O Ivan foi dos jogadores mais completos com quem partilhei o campo. Sabia o que fazer antes de a bola lhe chegar. E sabia também quando calar e ouvir. O que ele deu ao futebol não se mede só em títulos.
José Mourinho: É fantástico em todos os aspetos: defende, compensa, corre, e é inteligente com a bola nos pés.
O futebol despede-se de um maestro. E os adeptos, de um símbolo - um exemplo de profissionalismo, elegância e caráter. A sua ausência nos relvados será, paradoxalmente, uma presença constante na memória de quem verdadeiramente ama o jogo. Agora, inicia-se um novo capítulo: o tempo de estar com os seus familiares, de retribuir com proximidade todo o apoio, força e motivação que, em silêncio, o acompanhou ao longo de uma carreira brilhante. Chegou o momento de viver a vida noutro ritmo - saboreá-la com leveza, explorar novos caminhos e abraçar futuros projetos com a mesma paixão, classe e humildade com que sempre honrou cada camisola que vestiu.
Agora, a camisola fica pendurada, as chuteiras repousam. Mas o nome, esse fica. Fica nas bancadas do Sánchez Pizjuán, nas noites de Camp Nou, nas ruas de Split, nos relvados onde ainda hoje os jovens sonham. Fica em cada treinador que sonha com um médio assim. Fica em cada adepto que percebe que jogar bem é, antes de tudo, entender o jogo.
É por tudo isto que, agora que se despede, o mundo do futebol – mesmo em silêncio – se levanta para o aplaudir.
Ivan Rakitic despede-se. Mas não parte. Fica connosco, onde vivem os eternos.
Obrigado Ivan. O futebol foi melhor contigo.
«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.