Querido, vamos ter de mudar o sofá da sala
Imagine que chegava a casa e o sofá estava no outro canto da sala, para ver televisão tinha agora de se inclinar para a esquerda e a pintura oferecida no casamento mudara de parede. Provavelmente ficaria incomodado e desconfiado: será melhor assim? É o que sentimos quando alguém decide alterar os quadros competitivos de uma competição desportiva. E no entanto mexer é um risco necessário.
A UEFA introduziu esta temporada a maior alteração das últimas décadas nas competições de clubes. A Uefa Champions League não era propriamente uma prova com problemas, Europa League e Uefa Conference League pareciam estabilizadas. É precisamente nesses dias, quando faz sol, que devemos mudar de casa.
Pela forma como tudo foi feito, percebemos que a UEFA estudou o tema e preparou muito bem a comunicação das alterações, com um vídeo arriscado em que o presidente da organização, Aleksander Ceferin, surgia rodeado de antigos jogadores para nos explicar como iria funcionar o nosso entretenimento favorito do meio da semana.
O formato acrescenta datas que antes não existiam e aumenta o grau de imprevisibilidade e emoção da primeira fase, com mais jogos entre as equipas de topo logo nesse momento da prova. Antes desta alteração, a fase de grupos era sonolenta, arrastava-se quase sem notícia. O interesse de clubes, adeptos, televisões e parceiros comerciais era reduzido. Logo, mau para o negócio.
O novo formato acrescenta jogos, cria uma jornada final em que quase tudo muda ao longo de duas horas e um modelo onde cada lugar conta, porque influencia seriamente as fases seguintes. Deixaram de cair clubes de umas provas para as outras.
Eliminar os jogos sem interesse
Uma avaliação séria das alterações precisará de tempo. Mas agora que já temos 12 equipas nas meias-finais, vale a pena olhar para o que sucedeu em 2024/2025.
Na Uefa Champions League, estão nas meias-finais três dos quatro primeiros classificados da primeira fase: Barcelona (2.º), Arsenal (3.º) e Inter (4.º). O outro apurado é o PSG (15.º).
Na Europa League, só os penáltis evitaram que os quatro primeiros estivessem nas meias-finais. A Lazio caiu às mãos do Bodo/Glimt, da Noruega, clube que tinha sido nono. Os outros são Ath. Bilbao (2.º), Manchester United (3.º) e Tottenham (4.º).
Na Uefa Conference League, mais do mesmo: Chelsea (1.º), Fiorentina (3.º) e Djurgarden (5.º), mais a exceção Betis (15.º).
Minha conclusão: a alteração não afasta os melhores da fase decisiva. Ser competente na primeira fase traz benefícios. Continua a haver espaço para histórias inesperadas, como a do Bodo/Glimt e a do Djurgarden. Há seis países representados. Existe interesse e palco para clubes médios, que precisam de ser fortes. O formato promete.
O futebol profissional compete pela nossa atenção com tudo o resto: trabalho, escola, amigos, família, televisão, YouTube, plataformas digitais, podcasts, corridas no parque, futeboladas com amigos, concertos, viagens, praia no verão. Eliminar os jogos que não interessam deve ser o objetivo número 1 de qualquer organizador.
No mundo ideal só haveria jogos como o Manchester United-Lyon, da Europa League. No mundo que conseguimos ter não podemos desejar menos do que isso e trabalhar para que um dia seja possível. Porque todas as outras atividades estão a tentar fazê-lo, chutando para longe o espaço que o futebol ocupa na nossa vida
Os dias complexos que se vivem no mercado francês, com notícias alarmantes sobre a venda dos direitos de transmissão da Liga, podem ser um sinal de que o desinteresse dos adeptos é real e provavelmente um desafio global. Enterrar a cabeça na areia e esperar que passe não funcionará.
Mexer em tudo menos na Liga
Em Portugal, não mexer tem sido a regra no futebol profissional.
Na última década, o Campeonato de Portugal foi reduzido e passou a ser o quarto escalão, dando origem à Liga 3. Nasceu a Liga Revelação, foram alteradas as divisões da formação. A Liga Placard de futsal tem hoje menos equipas, assim como a prova feminina. A Liga BPI será jogada na próxima época apenas por dez equipas e vai nascer a quarta divisão, com redução de clubes nas restantes.
No futebol profissional nada de relevante aconteceu. Aragens de mudança como a que foi liderada pelo SC Braga há uns anos terminaram sem resultados práticos.
Mudar formatos é complexo e tarefa que obriga a pensamento profundo, coragem e capacidade para gerar consenso. Não alterar é ainda mais perigoso.
A Liga Betclic, nosso principal produto para exportação, é hoje uma prova com muitos jogos de escasso interesse, o que leva a estádios vazios e emissões de televisão sem brilho e impacto. Os parceiros portugueses com relevância afastam-se e sobram as casas de apostas, o que não pode ser entendido como um bom sinal.
É provável que Portugal tenha equipas profissionais a mais, logo um campeonato demasiado longo. O número de clubes e a forma como competem entre eles é o nosso sofá da sala.
Face ao desafio da centralização de direitos audiovisuais e à necessidade de agrupar todos à volta de uma chave de distribuição do dinheiro, infelizmente este não é o momento certo para discutir o número de clubes. Será sempre um tema fraturante. Adiar por um instante parece ser a única opção. Mas sem esquecer que chegará o dia em que vamos ter de arriscar, encarar a realidade e mudar mesmo o sofá. Esperemos que não seja tarde de mais.