Quem quer ser lobo... veste-lhe a pele
Fase do Portugal-Ilhas Fiji no Mundial de Râguebi (Foto: PanoramiC/IMAGO)

Quem quer ser lobo... veste-lhe a pele

OPINIÃO20.10.202309:21

«Lembre-se que um amador construiu a Arca, e que um grupo de profissionais construiu o Titanic», escreveu Luís Fernando Veríssimo

O telefone não podia ter tocado em pior hora… O árbitro acabara de dar início ao Portugal- Espanha, jogo decisivo quanto ao apuramento para os quartos do Euro-2004. Trabalho não seria, estava quase toda a redação de A BOLA colada ao televisor. Contrariado, lá atendi.

- Jorge, preciso que me mandes a letra do Hino de Portugal.

O pedido, de todo inusitado, foi feito pelo meu amigo David, holandês, num tom que misturava ansiedade com empolgamento.

- David, amanhã trato disso, agora estou a trabalhar e ainda vou demorar tempo a traduzir para o inglês. Mas para que queres a letra do Hino de Portugal?

- Manda em português e inglês, por favor… Acabei de ouvir o Hino de Portugal e, só pela música e maneira como todos cantaram, acho mesmo que é o melhor Hino de empolgamento de uma equipa de futebol. Tenho curiosidade em conhecer a letra. Com um Hino destes, Portugal já está a ganhar. Comparado com o da Espanha, que nem letra tem… Prepara o champanhe que vais festejar…

Voltei a lembrar-me do que me disse o David em 2007, na estreia dos lobos no Mundial de Râguebi, com a Escócia. E quando milhares de portugueses cantaram A Portuguesa no Stade de France, na final do Europeu de futebol de 2016. Ou quando Jéssica Silva chorou ao cantar o Hino na estreia da seleção feminina de futebol num mundial. E evoquei Pessoa. «Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal».

Escrita por Henrique Lopes de Mendonça e composta por Alfredo Keil, A Portuguesa foi consagrada como Hino Nacional pela Assembleia Constitutiva a 19 de junho de 1911. A República revogava o Hymno da Carta, uma belíssima peça musical composta pelo Rei D. Pedro IV, mas com uma letra de todo desajustada à República. E quando o músico Dino d’Santiago sugeriu que se mudasse a letra para uma linguagem que não fosse bélica, de pronto me manifestei contra. Primeiro porque o que está em causa é uma interpretação simbólica da letra - há canhões contra os quais marchamos todos os dias - segundo porque as experiências em outros países demonstram que quanto mais mexes no hino menos te identificas com ele.

Em julho de 2000, os jogadores do Spartak de Moscovo escreveram uma carta ao presidente russo, Vladimir Putin, a pedir uma letra para o hino russo como forma de motivação. Letra que caíra após a desintegração da União Soviética. «Não queremos baixar as cabeças enquanto ouvimos o hino nos estádios de futebol sem letra para cantar, Isso é meio caminho andado para se perder um jogo, mesmo antes de começar», lia-se na missiva dos jogadores. Coincidência ou não, cinco meses depois Putin aprovava uma nova letra para o hino russo.

Pobreza é só ter dinheiro

Entre os 33 lobos no Mundial de râguebi de 2023, 17 são profissionais, 16 conciliam a vida estudantil e profissional com a modalidade. 16 nasceram e vivem em Portugal, sete são emigrantes e 10 são luso franceses, descendentes de emigrantes. Alguns com parco vocabulário na língua de Camões. Mas todos cantaram A Portuguesa com o mesmo sentimento. Há, de facto, na letra e na música um fator agregador de emoções.

A cadeia televisiva britância Sky Sports defendia que quem não se sentasse em frente ao televisor a ver o jogo entre Fiji e Portugal «é porque não gosta de râguebi». Os lobos deram-lhe razão com uma vitória épica e histórica. Há nesta seleção uma generosidade, uma paixão, uma pureza de princípios, um espírito de entreajuda que, aliadas à qualidade, fazem dos lobos uma equipa que tem de ser vista por quem gosta de râguebi, evocando uma velha máxima de ser este «um jogo de bárbaros praticado por cavalheiros». E a prova que o amadorismo não significa menor qualidade de trabalho, menos empenho, menor comprometimento.

«Lembre-se de que um amador solitário [Noé] construiu a Arca. E que um grande grupo de profissionais construiu o Titanic», escreveu, com graça, o escrito brasileiro Luís Fernando Veríssimo. Onde está o segredo? No propósito. Num País onde a solução para os problemas é despejar o dinheiro que não temos e fazer leis que não são regulamentadas e têm mais buracos que um queijo suíço, o engenho e um trabalho sério, metódico e apaixonado provam ser a base de bons resultados. O também escritor brasileiro Millôr Fernandes, defende de forma corrosiva que «se todos os homens recebessem exatamente o que merecem, iria sobrar muito dinheiro no Mundo». Mais pedagógico, Augusto Cury desabafa: «Algumas pessoas são tão pobres, que tudo que elas têm é dinheiro».

O nível académico dos lobos, entre doutores, mestres e licenciados, é elevadíssimo. E já garantiram o direito de lhes ser devolvido em investimento profissional e desportivo tudo o que têm dado ao País e à modalidade. E que o profissionalismo seja erigido nos pilares atuais, onde amadorismo não é uma condição ou desculpa. Porque a qualidade, paixão e entrega não têm condição social ou monetária. O caráter ou se tem ou se não tem.

O adepto é que tinha razão

O adepto é como o cliente: pode até nem ter sempre razão, mas tem sempre emoção. Mas agora o adepto da Seleção Nacional de futebol deve estar a desabafar: «Vêm como eu tinha razão?». Com esta geração de talentos, Portugal tinha de jogar mais. Melhor. Ser mandão, assustar mais, entrar em campo já a ganhar, sair de campo de barriga cheia. Finalmente, é o que estamos a ver. A conversa agora ate já é - imagine-se! - saber gerir a sofreguidão, algo que falhou com a Eslováquia. O grupo é fácil? E outros no passado não eram? Este sucesso vem da qualidade, do próprio selecionador ter aberto mão de algumas ideias originais ao perceber depressa que os caminhos passavam por outros lugares, mas também do espaço de felicidade que os jogadores encontram na Seleção. Não conheço todas, mas em quase 30 anos de jornalismo ainda não conheci nenhum seleção superior a Portugal como espaço de orgulho e felicidade dos jogadores.

Depois, é uma bênção ouvir jogadores como Bruno Fernandes, Bernardo Silva, João Cancelo ou Rúben Dias. Fogem aos lugares comuns, são inteligentes, maduros, transparentes, claros. Está a fazer-lhes bem terem mais Mundo além do mundo que já era o deles. Nunca achei que o facto de Portugal perder precocemente os jovens talentos, em todas as áreas de atividade, fosse obrigatoriamente uma fatalidade. Nem seria bom que ficassem todos, mesmo que Portugal os pudesse reter. Ter Mundo enriquece. O que Portugal deveria criar, em todas as áreas de atividade e conhecimento, era um espaço de Seleção Nacional, como tem o futebol. Um espaço onde, orgulhosamente, as nossas principais mentes e empreendedores pudessem vestir, orgulhosamente, as cores de Portugal e dar ao Pais muito do que o Mundo lhes está a dar. Por isso, continuemos a investir forte na formação. Na educação. O quase centenário Derek Bok, antigo presidente da norte-americana e prestigiada Universidade de Harvard, resume tudo: «Se você acha que a instrução é cara, experimente a ignorância».