Entre comissões e eleições

OPINIÃO29.09.202004:00

1 - Volto ao meu amigo Kalani, de quem falei há uma semana. Regressou a Pago Pago e logo me mandou uma missiva, depois de ter lido n’A BOLA a minha crónica. Certamente, o leitor estará a perguntar se compreende a nossa língua ao ponto de ler razoavelmente bem o que escrevi. É que ele - além de um incontido autodidactismo que o faz procurar saber coisas que não lembram ao diabo - passou uns bons anos em Macau, ainda então sob administração portuguesa. É claro que também lê bem os meus textos, não porque sejam melhores ou piores do que outros, mas porque fez toda a sua aprendizagem na ortografia antes do chamado acordo ortográfico, e na qual continuo a escrever. Por vezes, Kalani coloca-me dúvidas que até têm a sua razão de ser. Recordo aqui algumas, transcritas das suas mensagens: «Li que o Benfica entrou em rotura com o Cavani. Mas então o que é isso da rotura do Benfica? Há joelhos e músculos na SAD?». Lá lhe expliquei que foi o clube que entrou em ruptura com o irmão do Cavani. Outro exemplo: «Compreendo que, por aí, não haja público nos estádios por causa da pandemia, mas li que os clubes querem espetadores a assistir aos jogos. Fiquei confuso. Será que o coronavírus, além de infectar pessoas, também espeta dores nas suas costas? Ou será que há jogos em que há mais dores para espetar que espectadores?» Ou esta mensagem: «Li que na receção dos hotéis não são permitidos fatos de indisciplina. Já sabia por ti que, com a pandemia, muitos hotéis entraram em recessão, mas o que são fatos de indisciplina? Serão os fatos de treino? Será o calção com que o Porro assinou o contrato?»  Lá lhe tive de explicar, que, em acordês (e sucessivas metástases) receção é recepção e fatos são factos. Mas foi numa outra mensagem que constatei que ficou completamente aturdido. Vejamos: «Ninguém para o Benfica!!! Mas não há mais contratações? Trata-se de uma nova regra do fair play da UEFA?». Respondi-lhe de volta para o acalmar. De facto, o acordo (h)ortográfico tirou o acento de pára (do verbo parar), pelo que a mesma frase pode ser lida significando a preposição para ou a 3.ª pessoa do presente do indicativo do verbo parar.

2 - Bem, voltando ao futebol propriamente dito, o meu amigo - sempre estudioso - reconhece que o que mais lhe custa a entender é a geografia ocidental e certos nomes de jogadores. Há tempos, lendo até coisas do final do século passado, perguntou-me se a Galiza pertencia ao Douro Litoral. Mais recentemente, encheu-me com uma série de dúvidas: se Portimão ficava perto do Porto, se a Hungria era algum bairro em redor de Gaia, se o Mercado do Benfica era fora do Benfica (aqui julgo que foi a mudança da preposição de para do que o baralhou), e até se Villas Boas era alguma aldeola nortenha, com nome pomposo. Poderão imaginar o trabalho que me deu pôr os pontos nos i (mesmo sem vídeo-árbitro). 

Já sobre nomes, tem-se interrogado sobre haver tantos diminutivos no Benfica. Citou o Cebolinha, o Pedrinho e o Chiquinho. «Então o Cebolinha e o Pedrinho são diminutivos onomásticos e aumentativos monetários?» Adverti-o para não fazer uma tradução literal dos nossos nomes e alcunhas. Sobretudo com o diminutivo que é muito português e brasileiro. Recordei-lhe atletas que, este ano, estão a jogar noutros clubes, como Palhinha, Paulinho, Costinha, Gabrielzinho, Rochinha, Dieguinho, Baixinho, Luquinhas, Reisinho, Leandrino, Alvarinho (boa cepa), não esquecendo o nosso melhor futsalista, Ricardinho. É que o português é carinhoso, afectivo, compassivo. O cego é o ceguinho, mas nunca cegueta; o manco é o manquinho; o tolo é o tolinho. O magro, evidentemente é o magrinho. O pobre coitado é mais simplesmente um coitadinho. E até um gordo tem o carinhoso trato de gordinho, como que contrariando a tendência anatómica.

Por fim, lá da sua ilha, disse-me que, enquanto cristão, lhe tem feito confusão juntar no Benfica um Jesus criacionista e um Darwin evolucionista.

3 - Outro assunto que baralhou o Kalani foi a polémica das comissões de honra. Começou por me perguntar a partir de que percentagem asseguravam essa qualificação de honra. Dez por cento? Vinte por cento? E quais constariam do quadro de honra? As de vinte e cinco por cento? Expliquei-lhe que, como em qualquer língua, a mesma palavra pode ter significados bem diferentes. Neste caso não se trata de fartas comissões para os intermediários, mas de listas com nomes apoiantes de alguém ou de alguma entidade, muito habitual na política e no futebol. Disse-lhe que estive em algumas, mas que, de há uns tempos a esta parte, me deixei disso. Primeiro, porque, nos tempos de agora, há a tendência doentiamente maniqueísta para se concluir que se és amigo de um candidato, és inimigo do(s) outro(s). Por isso, se estou numa comissão de honra de A, logo se pensa que seria o mesmo que estar nas comissões de desonra de B ou C, caso elas existissem. Depois, porque me irrita a exibição dos nomes, como troféus de caça, cometendo-se até a injustiça de, mediaticamente, se seleccionarem uns poucos e menorizar quase todos os outros. Em terceiro lugar, são comissões de honra de quê? E a honra é para quem, pois que as ditas comissões muitas vezes anunciam-se antes de haver programas e listas de candidato. E confesso que não gosto da mistura que há entre a maioria que dá o nome generosamente e utilitaristas que o dão a pensar mais na retribuição de honrarias e até em futuros lugares de honra, do que propriamente na honra da comissão. As comissões de honra de tão inflacionadas perderam valor facial. Aliás, a honra anda pelas ruas da amargura, de tal modo que continua a ser amortizada a uma taxa acelerada. Já quanto a um porto de honra, dispenso-o por razões sanitárias.

4 - Aproximam-se as eleições no Sport Lisboa e Benfica. Anunciam-se cinco listas, o que considero uma expressão saudável da democraticidade do clube. Os sócios eleitores aguardam as listas completas e os programas, embora esteja na moda votar-se independentemente destas referências. Ainda agora, no plano político, ninguém sabe a proposta do Governo quanto ao Orçamento do Estado para 2021, nem o próprio Executivo. Mas já há autoridades a dar bitaites e a definir posições e votar de cruz, sem terem de ler a maçada da massada. O meu amigo samoano não resistiu, porém, a perguntar-me algo sobre as eleições encarnadas e até me pediu para, nesta fase pré-eleitoral, definir em duas palavras (que levei à letra) as candidaturas. Lá lhe fiz a vontade que, aqui, transcrevo: Luis Filipe Vieira - o incumbente dependente; João Noronha Lopes - o divergente exigente; Rui Gomes da Silva - o dissidente impaciente; Bruno Costa Carvalho - o repetente resistente; Francisco Benítez - o emergente pretendente.