O último tabu do desporto feminino
Há dois anos, o mais emblemático e seleto torneio de ténis do Mundo, Wimbledon, abriu uma exceção ao seu rigoroso código para os equipamentos que obrigatoriamente têm de ser brancos. Em 2023, contudo, as jogadoras passaram a poder usar roupa interior, os habituais calções, de cor escura para atenuar os constrangimentos relacionados com o período menstrual, uma mudança há muito pedida pelas tenistas.
Na mesma altura, em Inglaterra, foi decidido que a seleção feminina passaria a usar calções azuis escuros para que atletas não se sentissem desconfortáveis durante o período e outras equipas seguiram o exemplo ou tomaram a iniciativa, casos do Manchester City, o West Bromwich Albion e o Swansea.
Esta semana, o assunto voltou à baila, associado à perda de peso intencional, assumida pela francesa Pauline Ferrand Prévot.
A vencedora do Tour confessou que perdeu propositadamente quatro quilos antes da Volta e a polémica saltou para as páginas dos jornais e da internet. A segunda classificada, Demi Vollering, também não escapou às perguntas, apesar de ambas explicarem que ser saudável é a prioridade mais importante para a competição de alto nível.
«A prioridade é estar saudável», insistiu Vollering, líder da FDJ-Suez, recordando que estava doente após o Tour de Suisse e optou por se recuperar totalmente em vez de se concentrar muito em atingir um peso alvo. «Quer dizer, para mim, não é muito difícil, porque não tenho problemas e, a meu ver, a saúde é sempre o mais importante», insistiu à comunicação social na conferência de imprensa quando questionada sobre as implicações para a saúde mental das questões de peso, explicando que sempre se sentiu positiva e orgulhosa do seu corpo e da sua força e que pretende liderar a geração mais jovem de atletas pelo exemplo. «Quero mostrar às meninas que não é precisa ser super, super magra e com treino duro, pode conseguir-se», declarou Vollering, uma das melhores trepadoras do pelotão.
Pauline Ferrand Prevot: “I know that this shape that I have now I will not keep forever. It's just for the Tour de France. It's also my job to be the best as possible. We know this is an endurance sport, and to climb you need to have a high watts per kilogram.“
— Lukáš Ronald Lukács (@lucasaganronald) August 4, 2025
"I don't want to… pic.twitter.com/AZUTTryl4J
«Espero voltar. Para mim, é um bom desafio continuar à procura de grandes vitórias nas montanhas com o corpo que tenho. Sei que muitas ciclistas lutam com problemas de peso, mas espero que as meninas agora não pensem que precisam ser super magras para andar nas montanhas», alertou.
O tema não é novo mas reapareceu depois do diretor desportivo da FDJ-Suez, Lars Boom, ter notado a diferença nos tipos de corpo e nas performances de escalada entre Vollering e a rival Ferrand-Prévot.
A vencedora do Tour regressou às corridas de estrada este ano, depois de uma brilhante carreira no BTT, onde conquistou o ouro olímpico no verão passado. Venceu a Paris-Roubaix e tirou 10 semanas de folga para se recuperar de uma pequena lesão e treinar especificamente para o Tour, onde chegou como favorita, depois de revelar qual era a sua estratégia que incluía perder peso e treinar em altitude.
🚴♂️ #TDFF2025 | ⛰️ Vainqueure du Tour de France Femmes, Pauline Ferrand-Prévot a notamment perdu 4 kilos durant sa préparation.
— francetvsport (@francetvsport) August 5, 2025
🗣️ Une perte de poids qui a été vivement commentée, ce à quoi la Française a répondu en story Instagram : pic.twitter.com/cHXC6xhmDj
«Estou um pouco mais leve do que na época das Clássicos, em que é preciso subir dois a três minutos e ter alguma potência. Agora, para as subidas longas, de 1h30, preciso de uma boa relação entre peso e potência, então tive de perder algum peso. Estou bastante familiarizada com isto porque é o que tenho feito durante temporada», explicou a francesa, fazendo soar as campainhas.
«Quando tenho um objetivo, gosto de ter um peso de corrida para esse evento. Sei que não posso ser super magra durante toda a temporada e não acho isso muito saudável, por isso prefiro perder peso devagar», justificou Prévot.
«Cada um prepara-se como quer», insistiu.
«Sim, eu fiz esta escolha, e trabalho muito para isto. Não quero ficar assim porque sei que não é 100% saudável, mas também tive um bom plano com a nutricionista da equipa, e está tudo sob controle. Eu não fiz nada extremo, e ainda tinha tinha poder depois de nove dias de corrida», observou a primeira gaulesa a vencer a Volta a França.
Outra das ciclistas em prova, Cédrine Kerbaol, oitava no Tour, já tinha colocado a polémica questão em cima da mesa, logo no início da prova.
Kerbaol, que corre pela EF Education-Oatly, tem um diploma em nutrição, e falou do «momento perigoso», como a pressão para perder peso para as corridas, arriscando efeitos colaterais negativos para a saúde das ciclistas, como, por exemplo, a perda do período menstrual.
🇫🇷 Diplômée en nutrition, Cédrine Kerbaol alerte sur la maigreur extrême dans le peloton 🎙️
— SPORTRICOLORE (@sportricolore) July 31, 2025
« Ne pas avoir ses règles, ce n'est pas normal » 🗣️ pic.twitter.com/zQ3l6PyA1d
Aliás, ela criou uma conta no Instagram para aumentar a consciencialização e falar sobre o assunto, esperando que a conta possa servir de exemplo para outras pessoas, em vez de envergonhá-las.
«Não estava à espera de falar sobre isso, mas houve muitas respostas positivas de muitas pessoas que têm as mesmas ideias, mas não sabem se os outros também as partilham», disse no início da etapa 6 do Tour, em Clermont-Ferrand. «Acho que começamos a quebrar o tabu, e isto pode ter um efeito positivo de prevenção», explicou a atleta.
🇳🇱 Demi Vollering wants to set an example for young riders:
— Domestique (@Domestique___) August 4, 2025
“I’m proud of my weight and want to set a good example. I hope that in the future I can win again with my weight and show girls that you don’t have to be super, super skinny."
Full story at Domestique 👇
📷 Cor Vos pic.twitter.com/HjzmjKanyl
Estou menstruada, e agora?
Durante a clássica Liége-Bastogne-Liége, Demi Vollering confessou que se sentiu muito mal e explicou a razão. «O meu corpo jogou contra mim», confessou no final da prova.
Aquilo que podia ter sido um dia mau, rapidamente teve uma explicação mais detalhada. «Não tinha as pernas no melhor momento. Sou mulher e, às vezes, sofremos um pouco com as hormonas», disse referindo-se à menstruação.
Mais tarde, no Instagram, acrescentou: «É uma parte normal da vida das atletas e uma coisa de que não falamos o suficiente», assinalou. «Quando fiz a publicação, muitas pessoas escreveram-me a dizer para tomar isto e experimentar aquilo. Parece que as pessoas não aceitam que existe, mas não somos máquinas», disse Vollering.
«É importante saber que as mulheres têm dias maus e que está tudo bem em ter dias maus. Também temos dias bons. Não devia ser tabu ou estranho falar do ciclo menstrual», exclamou a corredora.
«É um tema que se fala e se percebe pouco. O nosso ambiente é muito masculino e, às vezes, diretores e preparadores não têm noção do difícil que é», contou Mireia Benito, del AG Insurance-Soudal Team, ao jornal AS. «Parece que continua a ser um tabu e é uma coisa que todas as mulheres saudáveis vivem, todos os meses e que afeta o seu rendimento», explica à publicação espanhola, Ane Santesteban, da Laboral Kutxa-Fundación Euskadi.
Existem alguns estudos sobre o tema, sobre o que se passa quando as mulheres menstruadas estão a competir ao mais alto nível. «Fala-se de mudar a preparação em função do ciclo menstrual, mas não existe muita informação», explica.
Já este ano, a Universidade Central do Equador publicou um estudo sob o título «Impacto do ciclo menstrual no rendimento desportivo» e depois de analisar alguns artigos científicos, chegou à conclusão que coincidem em assinalar o menor rendimento na fase antes da ovulação e da menstruação e insiste na necessidade de personalizar os treinos para as atletas na fase que se segue.
Mar Sempere, médica da equipa de ciclismo da Movistar, explica que seguem individualmente cada corredora, porque reagem de foram diferente. «Quando afeta podem ter dores, uma maior retenção de líquidos, aumentar de peso, rigidez muscular e até alterações de sono, o que interfere na recuperação», acrescenta.
Quando Mireia Benito começou a competir, ouviu muitas vezes dizer que tinha de perder peso. «Disseram-me vezes sem conta que devia perder uns cinco quilos. Isso começa a perturbar, a entrar na cabeça e acabamos por ser tentadas a fazê-lo», conta a corredora da Soudal.
Esta realidade é transversal ao pelotão profissional e às ciclistas amadoras. «Há corredoras que escolhem perder peso e forçar a perda da menstruação. Com isso sacrificam a saúde, o futuro e o bem estar. Isto não se pode fazer, não é saudável, mas está muito normalizado», admite. «Nas modalidades de resistência, está instaurado há muito a perda de peso e do período para melhorar o rendimento.»
Uma realidade que não é estranha à médica da Movistar, que já ouviu vezes sem conta a frase: ‘Quanto mais magra melhor’.
«Quando há uma perda de menstruação de mais de três meses, já podemos falar de uma situação patológica, sejam quais forem as causas e vai ter impacto no futuro na saúde e no rendimento».