O animal fantástico e a ave dos deuses
O FC Porto recuperou, já nos tempos modernos, o símbolo de um dragão que enfeitava, sem solenidade, o escudo do clube. Foi uma descoberta bastante imprevista, para não dizermos, mesmo, uma invenção notável.
Na criativa mitologia dos clubes portugueses de futebol, o Benfica já era simbolizado pela águia e o Sporting pelo leão. Ambos animais nobres, zelosos dos seus domínios, inquestionavelmente poderosos. Ora, o FC Porto era ainda demasiado terreno, naturalista, vivendo uma certa ingenuidade dos símbolos competitivos. Havia, até, quem difamasse a alma e o caráter portista, anunciando aos sete ventos a pouca virtuosa alcunha dos andrades.
Enfim, nos altos pouco nítidos do brasão se descobriu a figura pouco altiva de um dragão mais assustado do que assustador.
Porém, a criatividade humana tem poderes infinitos e de uma criatura desnaturada e descolorida nasceu a imagem imponente de um dragão ameaçador que, hoje, consta do símbolo e da bandeira portista como garante espiritual de grandes e heroicas conquistas.
Curiosidade maior é que dragão e águia são, mitologicamente, velhos e infatigáveis inimigos. Ambos, símbolos de bandeiras de impérios que nunca repartem o poder, antes o exercem sem qualquer contemplação.
Note-se que este dragão azul é o da versão oriental. Existe, de facto, o dragão pouco respeitável, que, a ocidente, representa o caos e o mal; e existe, milenar e orgulhoso, o dragão do oriente, que se apresenta ao mundo como um animal de reconhecida inteligência e de vontade de poder.
Quanto à águia, dessa nunca existiram dúvidas. Está bem assinalada na bandeira benfiquista conforme sempre se apresentou ao mundo: é senhora dos céus, mensageira dos deuses, símbolo dos impérios mais poderosos, companheira de heróis.
Hoje mesmo se voltarão a encontrar e a combater. Será, pelo menos espera-se que seja, um combate virtual, com algo de mitológico, uma representação teatral de um combate pelo tal poder único e indivisível.
É isso, afinal, o futebol. Uma batalha de mentira, uma representação do confronto de guerreiros, uma mitologia mais contemporânea, mas nem por isso, menos impetuosa e marcante, na qual milhões acreditam com toda a convicção das suas almas e com toda a inquietação das coronárias.
Bem sei que mandará a moral pública falar-se de uma grande festa e que, como tal, deve ser sempre tratado um jogo de futebol. O problema é o povo, o tal que é quem mais ordena, e que nos vem dizer que já não acredita no Pai Natal, na moralidade cristã (parece ter ultimamente boas razões para isso), nos bons costumes. Acredita, isso sim, que se joga a vida naquele tapete verde, quase sobre o Douro, como se dois heroicos gladiadores se defrontassem, sabendo que só haverá um de dois resultados: glória ou morte.
Assim lido, a horas do grande jogo, parece um exagero desmedido, eu sei. Mas se alguém ler esta prosa durante o intervalo, por certo achará que ela tem qualquer coisa de surpreendente, porque faz da ficção uma realidade.
É assim a história dos homens, é assim a história dos clubes de futebol, que representam, enfim, o grande triunfo do mito contemporâneo. Lá porque os homens modernos se julgam menos tribais do que os antigos, não quer dizer que no instinto animal e na paixão sejam mais racionais. Não são.
Pois que venha o espetáculo, que entrem os guerreiros, que o circo, enfim, comece para deleite de todo um país que pára, observa, sente e que por isso se sentirá humanamente vivo.