Luis Enrique junta a Intercontinental a currículo de grande qualidade, com duas Ligas dos Campeões, um Mundial de Clubes e vários títulos nacionais - Foto: IMAGO
Luis Enrique junta a Intercontinental a currículo de grande qualidade, com duas Ligas dos Campeões, um Mundial de Clubes e vários títulos nacionais - Foto: IMAGO

Luis Enrique: a força de 11 em vez de apenas 10

Convicção, coragem e uma equipa criada, acima de tudo, a partir de uma ideia e de um rumo, mesmo quando o resultado falha. Luis Enrique, 'socialista' em clube e cidade de ostentação

Sou fã de Luis Enrique. Não sei se um dia não o irei criticar como hoje acontece com ídolos do passado, sobretudo por traição aos próprios valores em nome do resultado, mas nenhum de nós tem noção do que aí vem.

Este apreço nada tem que ver com a tragédia pessoal que viveu — e que refiro aqui para retirar já da equação —, mas até nesta é exemplo de superação, na forma de lidar com a maior das adversidades, que para muitos de nós será a perda de um filho. Provavelmente, ter-nos-ia deixado mortos a todos por dentro, enquanto nele faz positivamente parte de si, da sua forma de olhar para o mundo e para a vida.

Sou fã, mesmo que nos odeie. Que nos provoque a nós, jornalistas — haverá outras opiniões, mas tenho e terei sempre orgulho na minha profissão e no meu trabalho —, com títulos de documentários, a lembrar-nos de que continuamos a não fazer puto de ideia do que é vestir a sua pele. Talvez, mas não preciso de ser correspondido. Garanto.

Escrevo na vitória, porém poderia fazê-lo após uma derrota. Não teria tido o mesmo impacto para quem lê, embora para mim um mau resultado nada alterasse nas conclusões. Luis Enrique não precisava da Intercontinental para ser enorme, tal como Vitinha não deveria necessitar de pôr mais um caneco sobre a cabeça para se sentir campeão do mundo.

O PSG será a melhor equipa da atualidade, mesmo que os resultados o contradigam. É-o ao incorporar numa equipa solidária, de visão socialista, que paradoxalmente faz casa na capital do glamour e do gourmet, de tudo um pouco e um pouco do capitalismo, num estádio chamado Parque dos Príncipes e com donos que poderiam comprar meio-mundo sem grande esforço. Não é pobre, mas recusa há muito ser só uma formação milionária.

Quando Fernando Santos foi despedido pela Federação na sequência do Mundial do Qatar, o meu preferido para a Seleção Nacional era, adivinham, Enrique. Mesmo que fosse visão quase impossível e de várias perspetivas: o espanhol já tinha dito que queria voltar a treinar um clube e, na Cidade do Futebol, o perfil traçado não era o de alguém que falava aos adeptos desde o quarto de hotel através do Twitch e era por vezes radical nas escolhas dos jogadores. Seria um treinador de rotura para a rotura. Contudo, Fernando Gomes e companhia seguiriam a linha habitual: um homem que procura consensos e gerir expetativas e egos. O caminho da paz — porque Enrique não deixaria ninguém indiferente à sua volta — ainda não trouxe a consistência, o rumo e até ideias para os vários momentos do jogo, que provavelmente já estariam definidas com o homem de Gijón. Só que não há ses, como já várias vezes escrevi aqui, no futebol.

Falamos de alguém que conseguiu viver com Mbappé, mas desvalorizou a sua saída porque sempre soube que estaria melhor sem ele ou alguém de semelhante estatuto, criando com 11 em vez de 10 uma malha mais apertada no tecido coletivo. Quebrou dogmas ao colocar dois médios, um com 1,71 metros e o outro com 1,72 na sala de máquinas da equipa, mantendo por perto Fabián Ruiz, esse sim de 1,89, mas sobretudo um tecnicista, a fechar o lote de operários talentosos e criativos. Depois, não teve medo de lançar jovens de forma consistente, juntando Mayulu, Ndjantou e Mbaye a Barcola e Zaire-Emery nas opções em finais ou jogos importantes. E é isso o que significa lançar jovens, não estreá-los só para o registo contabilístico, o treinador poder um dia reclamar a paternidade futebolística com ‘fui eu que o lançou’ e os próprios assinalarem no Instagram o ‘cumprir de um sonho’.

Foi ainda alguém que transformou um extremo fanático pelo 1x1 num falso 9 competente e que, através do seu rendimento integrado no coletivo —garantindo finalmente a tão perseguida Liga dos Campeões —, venceu posteriormente a Bola de Ouro e o Best. São duas obras-primas do técnico a Taça, após uma goleada por 5-0 a um bom Inter, e os troféus individuais do seu jogador mais expressivo, que têm também muito de si, nem que seja pela transformação em campo.

Além de, diante de qualquer rival, chamar a si a bola, querer jogar, atacar e marcar, e quando não a tem pressionar para voltar a tê-la. Uma proatividade que merece todos os elogios, mesmo que nem sempre corra bem.

A Supertaça Europeia e a Intercontinental — e depois de Mbappé, bateu o Flamengo praticamente sem Dembélé, devido a sucessivos problemas físicos; e com Nuno Mendes abaixo do habitual por razões semelhantes — vêm na sequência de tudo o resto. De uma estrutura e confiança, do banco para dentro de campo e vice-versa, e ainda entre todos os jogadores, que mantêm a equipa no caminho certo.

É verdade que nem sempre corre bem e não faltará quem lembre New Jersey e a final perdida diante de um Cole Palmer e um Chelsea assombrosos, que lhes roubaram o perseguido título de Campeão do Mundo, um pouco compensado agora com a festa no Qatar. Pode tudo correr mal num jogo, todavia, isso não pode nunca riscar o trabalho feito, agora novamente recompensado. Claro que foi nos penáltis, porém foi superior a um Atlético Ma…, desculpem, a um Flamengo fechado em si mesmo, quase contranatura, à procura do erro para surpreender o rival. Não tendo sido um jogo bonito, apenas o PSG se pôde candidatar a trazer esse rótulo de Doha, porque foi o único a contribuir. Mesmo diante do campeão brasileiro e sul-americano.

É óbvio que é bom ter os portugueses neste patamar, mas melhor ainda será se os aproveitarmos na Seleção. Vitinha é cada vez mais reconhecido, João Neves impôe-se em todos os encontros e um Nuno Mendes saudável lidera o ranking dos laterais-esquerdos, ainda que Alphonso Davies esteja de volta. Tendencialmente, a equipa das quinas aproximar-se-á do modelo parisiense no Mundial, ainda que haja diferenças incontornáveis.

É olhar novamente para o exemplo. Luis Enrique mostra-nos todos os dias que não há que ter medo de se assumir rumo, decidir e acreditar no talento. Antes, poderia ser só uma ideia romântica, mas não é destas que se tem enchido a sala de troféus do Parque dos Príncipes.