Benfica: Caro Rui, talvez seja o fim da linha
A memória é a síntese da vida. Narrei, em 1992, o primeiro jogo de Rui Costa numa competição europeia. Numa gélida noite de Moscovo, o médio genial que havia encantado o mundo, no ano anterior, com a camisola de Portugal no Mundial de sub-20, estreava-se para não mais parar de encantar quem verdadeiramente gosta de futebol.
As carreiras de sonho são assim: escritas com pena dourada e em registo durável, permanecendo na memória pela competência, pelo rasgo, pela inteligência e pelo talento.
O Rui evoluiu no relvado e tornou-se, meritoriamente, um Senhor da galeria dos eleitos do futebol em Portugal. E nunca escondeu que a sua camisola, a sua paixão e dedicação se escrevia com sete letras e ficava bem na sua vida de desportista de elite.
Quis ir mais além. Alguém duvida que por paixão? Rui Costa não precisa de projeção e muito menos de dinheiro. A única motivação que o fez candidato à presidência do Benfica foi isso mesmo, a paixão, a vontade de ajudar o clube e de juntar o seu nome à galeria de notáveis que, desde sempre (com algumas exceções), ocuparam a cadeira da presidência do clube da Luz.
Porém, os atributos que podem fazer um imenso jogador de futebol, amado, idolatrado e seguido por milhões como um dos melhores da sua geração, não são necessariamente os mesmos que podem ditar uma liderança de sucesso.
Porque o balneário, onde se pode ser líder enquanto atleta, não é o escritório ou a plataforma global onde se ditam opções estratégicas. E, sobretudo, onde não se pode errar na comunicação. O Rui sabe disso. Sabe que a sua base interna de apoio tem vindo a diminuir na exata medida do retrocesso ou, pelo menos, do não progresso desportivo, após investimentos vultuosos e promessas agigantadas. O Benfica vive de conquistas, como de conquistas vivem os profissionais, de mãos dadas (embora nem sempre pelas mesmas razões…), com os adeptos.
E aqui está a razão ontológica do problema: a melhor versão de nós próprios nem sempre se adequa ao momento, nem sempre resulta quando projetada no todo e nas massas. Rui Costa sempre foi um Senhor dentro do campo, e terá de procurar sê-lo fora dele.
A derrota na Taça de Portugal exacerbou as hostes pelo modo dramático como se processou. Mas, afinal, não é exatamente por isso que amamos o futebol, tal como ele é? No momento em que soou o apito final no Jamor, o que importava era — não apenas no local, por regra e diplomacia — ganhar e perder bem. Todos sabemos o que, em Portugal, isso significa. Há uma quase rotina de criticar, de encontrar bodes expiatórios para a mais simples das situações: uma das duas (porque, no caso, o empate não aconteceria) alternativas. Ganhar ou perder.
Rui Costa sabe que a oposição interna tem crescido de tom, na exata e inversa proporção dos resultados desportivos, claramente aquém dos desejados. E utilizou (certamente por sugestão e pressão de sábios spin doctors…) a pior forma de comunicação na reação à derrota na final da Taça de Portugal.
Fê-lo de duas péssimas formas: a reação a quente, desproporcionada e, aliás, de acordo com o que havia sucedido com o mesmo VAR (então árbitro central), à beira dos balneários do estádio da Luz, e, no dia seguinte, sob a forma de comunicado.
O que sucedeu, de modo muito simples e claro, foi a incapacidade de gerir internamente a derrota, e de utilizar esse facto como arma de arremesso, desviando a atenção da profunda contestação interna já existente e, claro, recrudescida com a perda da Liga e da Taça.
O Rui dos meios-campos de ouro perdeu a noção do equilíbrio que dele poderiam fazer um líder, alguém com noção das responsabilidades, do equilíbrio, de um certo ecumenismo desportivo que tanta falta faz aos senhores que gerem o futebol em Portugal.
O comunicado do Benfica é um ato de desespero dificilmente aceitável, em qualquer circunstância. O modo como o grande clube da Luz dispara em todas as direções, pressiona a arbitragem, ameaça com exposições sem sentido à UEFA, à FIFA e, imagine-se, ao International Board, suspende a cedência do estádio da Luz para jogos de seleções nacionais é uma espécie de mal disfarçada fuga para a frente que não dignifica o clube, enquanto instituição, e o seu dirigente máximo, enquanto referência.
Custa acreditar no que se lê. Custa ainda mais perceber que as circunstâncias internas de um poder em declínio e que os simples resultados de um jogo ou de uma competição possam boicotar a dignidade de um cargo e o simbolismo de um emblema.
É um Benfica distorcido, este. Volto à memória, a tal que, como Cardoso Pires, no seu De Profundis, Valsa Lenta sublinha, dá sentido à vida.
Lembro-me de Borges Coutinho, Ferreira Queimado ou João Santos, Senhores do dirigismo e do seu sentido exemplar. E entendo que Rui Costa, o jogador, tem todo o direito de pretender seguir os seus passos. Mas não tem a sensibilidade e o talento para perceber que é preciso postura e algum equilíbrio.
Falhou, e talvez saiba que tem os dias contados como Presidente do Benfica.
Meu caro Rui, como gostei de te ver, de narrar e de vibrar com os teus feitos enquanto atleta único, símbolo de um certo renascer da magia nos campos de futebol.
Como detestei ver-te submetido ao apoucamento dos valores do desporto, pela incapacidade de olhar nos olhos e perceber que é na ética de hoje que começam as vitórias de amanhã.