A justiça olímpica para 'todes'
A caminho de um torneio em França, alguns elementos da então União Holandesa de Atletismo retiram Foekje Dillema do comboio. Na plataforma da estação de Hilversum, disseram-lhe que a sua jornada terminava ali e que nunca mais teria autorização para competir. Quando ela agarrou na sua mala que estava no compartimento onde estavam as suas companheiras de equipa que, surpreendidas, lhe perguntaram o que se passava respondeu: «Dizem que eu não sou uma rapariga.»
Voltou à terra pobre que a viu nascer e nunca mais falou com jornalistas. Quando morreu, análises de ADN mostraram que era intersexo, o que antes se denominava hermafrodita. Viveu sempre como mulher e apesar de nunca ter sido esclarecido, algumas fontes garantem que terá recusado submeter-se a um teste de verificação de sexo, na altura, anos 50 do século passado, um exame físico invasivo. Foi banida para sempre.
Esta semana, o The Times revelou que o Comité Olímpico Internacional (COI) deve anunciar no início de 2026 que decidiu proibir a participação de todas as atletas transgénero nas categorias femininas dos Jogos Olímpicos, colocando um ponto final numa polémica que não pára de aumentar.
Até agora, o COI adotou o princípio de «nenhuma exclusão sem base científica», deixando nas mãos de cada modalidade a decisão, salvaguardando,porém, que as mulheres transgénero só poderiam competir com níveis reduzidos de testosterona.
OUT NOW! Canadian and Vancouver Rise midfielder, Olympic gold medalist, and a pioneer on and off the field, Quinn joins Sam on the pod! 🇨🇦🌟 pic.twitter.com/bpFEF4ZeCt
— The Women's Game (@WomensGameMIB) April 17, 2025
Agora, a diretora médica e científica do COI apresentou um estudo que sustenta existirem provas científicas de que alguém que nasceu biologicamente com o sexo masculino terá sempre vantagem física, mesmo com tratamentos de supressão hormonal durante vários anos.
Os 46 segundos que durou o combate de boxe entre a argelina Imane Khelif e a italiana Angela Carini, em Paris2024, reacendeu a polémica, até porque a italiana desistiu ao primeiro soco acusando a rival de ser um homem.
Khelif perdona Angela Carini «Il suo ritiro a Parigi una farsa, ma è una sorella. Ce l'ho con chi le ha fatto pressioni» https://t.co/7L7JAgzzaF
— Corriere della Sera (@Corriere) November 12, 2024
Na realidade, até hoje, a única atleta abertamente trans a competir nuns Jogos foi a neozelandesa Laurel Hubbard, no halterofilismo, em Tóquio2020, embora algumas páginas tenham anunciado que na capital francesa competiram 190 atletas LGBTQI+, três não binárias assumidas: Nikki Hiltz (atletismo), Quinn, do futebol canadiano e Alana Smith (skate). Ser não-binário (identidade de género) não implica qualquer transição médica, hormonal ou cirúrgica.
L'Algérienne Imane Khelif, médaillé d'or à Paris en -66 kg, a attaqué devant le Tribunal arbitral du sport les tests de fémininité mis en place par World Boxing
— L'Équipe (@lequipe) September 1, 2025
➡️ https://t.co/MyGgxhBy3d pic.twitter.com/N1sqtdloT8
A decisão que o COI se prepara para anunciar lança para cima da mesa várias questões e a primeira é que o sistema desportivo atual não tem espaço institucional para identidades fora do binário homem/mulher.
Muitos não sabem o absurdo do “guideline” do COI para que atletas trans, homens biológicos sim, possam competir com mulheres: testosterona baixa por apenas 12 MESES. Cirurgia de sexo NÃO É MAIS NECESSÁRIA! O esporte feminino vai acabar e NINGUÉM está protegendo as mulheres. pic.twitter.com/k6rJWkjaRL
— Ana Paula Henkel (@AnaPaulaVolei) May 28, 2019
Pela frente uma batalha entre quem acredita que princípio basilar do desporto olímpico é a igualdade de condições e que atletas trans mulheres, que passaram pela puberdade masculina, podem manter vantagens fisiológicas — maior massa muscular, densidade óssea e capacidade cardiovascular — mesmo após anos de terapia hormonal. Além disso, defendem, as categorias femininas foram criadas para garantir oportunidades justas às mulheres, após séculos de exclusão desportiva e que a inclusão de atletas trans é uma ameaça a esse espaço, revertendo conquistas do movimento feminista no desporto. Somado a isto, claro, há modalidades que têm exigências físicas diferentes.
Au coeur d'une vive polémique sur son genre, la boxeuse algérienne Imane Khelif a remporté vendredi la médaille d'or chez les moins de 66 kg. La championne olympique voit en ce titre une réponse à ses détracteurs https://t.co/SiqGnYqGE9 #Paris2024 pic.twitter.com/9m9NcWYDVg
— L'Équipe (@lequipe) August 10, 2024
El COI prohibirá a partir del próximo año la participación de deportistas transgénero en competencias femeninas, tras haber ''encontrado evidencia científica de ventajas asociadas a haber nacido hombre'', según informó The Times. pic.twitter.com/VnNrLIIHA3
— MDZ Online (@mdzol) November 10, 2025
Crie-se uma categoria para os que não são homens ou mulheres, clamam. Mas, a criação de eventos abertos ou híbridos será uma solução justa ou apenas reforça a segregação?
Parece simples?
El COI,más cerca de prohibir la participación de deportistas trans en categoría femenina, según informa The Times. Esa sería la conclusión de la comisión creada para la "protección de la categoría femenina" por Kirsty Coventry, la cual ha realizado estudios científicos sobre ello pic.twitter.com/ePi9U0m8sF
— Historias de los Juegos (@HistoriasdlosJJ) November 12, 2025
Mas não é.
Para outros, a exclusão de atletas trans viola o princípio da dignidade humana e o direito à igualdade de oportunidades reconhecido pela Carta Olímpica. Se o desporto deve ser um espaço de inclusão e representação social, banir atletas trans reforça estigmas e marginalização. O desporto deve ser uma arena de meritocracia biológica ou de inclusão social?
Nikki Hiltz makes history becoming the first out trans, non-binary athlete to reach an individual #Olympic final #NOH8 pic.twitter.com/kLD5rphtp5
— NOH8 Campaign (@NOH8Campaign) August 9, 2024
Tanto para discutir... Afinal, a quem pertence a definição de justiça no desporto: à biologia, à identidade ou à sociedade?