Revisitar Superga através dos olhos de Torino e Benfica
A BOLA percorreu os corredores da memória de uma das maiores tragédias da história do desporto mundial, descobrindo artefactos e imagens ligados ao desastre de Superga. Esta Exposição, composta por peças históricas, sobretudo pertencentes ao Museu do Torino - que foram trazidas de Itália até Lisboa de carro e não de avião - remete-nos para 3 e 4 de maio de 1949, quando após jogar com o Benfica na festa de homenagem a Francisco Ferreira, o Grande Torino voou para a morte, a poucos quilómetros de Turim.
«É um prazer poder comunicar um pouco desta memória conjunta do Benfica e do Torino, de Portugal e Itália», disse Luís Lapão, adiantando que «aquilo que tentámos neste espaço foi pegar nos pontos centrais da história, trazendo aos visitantes algo de apaixonante. É sem dúvida uma história dramática, mas ao mesmo tempo marcante para o futebol português e para o futebol italiano. Não nos podemos esquecer de que o Torino do final dos anos 40 vai tornar-se pentacampeão logo após o desastre, num contexto em que faltavam poucas jornadas, e as outras equipas também passaram a competir essencialmente com juniores.»
Sem se deter, o curador do Museu Cosme Damião lembrou que «a 3 de maio de 1949 o Benfica proporcionou ao seu capitão, Francisco Ferreira, também capitão da Seleção Nacional, uma grande homenagem. O Torino não veio a Portugal jogar com o Benfica no Estádio Nacional por acaso. Tudo começou num jogo que Portugal realizou em Génova com a seleção italiana, nascendo nessa altura uma amizade entre os dois capitães, Francisco Ferreira e Valentino Mazzola, um capitão do Benfica e o outro do Torino. Foi depois desse jogo que o Francisco Ferreira fez saber ao Benfica, que o seu desejo era que fosse o Torino a participar na sua festa de homenagem. Foi isso que veio a acontecer, e o Grande Torino despediu-se tragicamente do futebol, em Lisboa, a 3 de maio de 1949.» São de Luís Lapão as explicações para cada uma das imagens que se seguem...
O BENFICA
«Nesta parede onde são homenageados todos benfiquistas que participaram nessa partida lendária, e ainda o presidente Mário Madeira, e o técnico inglês Ted Smith. Entre os jogadores encarnados, figura o célebre Rogério Pipi, que foi o último a deixar-nos. Também se encontra uma foto de Valentino Mazzola, ao estilo de Hollywood, com a curiosidade de o Estádio Nacional ter sido o último palco em que atuou e, 18 anos mais tarde, o filho, Sandro, astro do Inter, ter ali perdido, com o Celtic, uma final da Taça dos Campeões Europeus como se fosse um ciclo a encerrar-se.»
A CHEGADA
«Esta exposição foi possível graças ao envolvimento da Embaixada italiana e também do Museu do Grande Torino e Della Leggenda Granata, com quem já tínhamos estabelecido relações anteriores, o que nos permitiu, num espaço de tempo bastante curto, fazer este trabalho, enriquecido com peças que não fazem parte do acervo do Sport Lisboa e Benfica, mas sim do Museu do Grande Torino. Nesta cenografia está retratado o momento em que o avião do Torino aterrou na Portela, e os seus ocupantes desceram do aparelho. O aparelho trazia, além destes 31 homens, outros materiais de bordo que estão listados num documento que temos exposto, encontrado no bolso do casaco do piloto após o desastre e que nunca tinha sido mostrado. Temos oportunidade de tê-lo aqui, assim como mostramos o ‘brevet’ de voo do piloto. Absolutamente simbólico do desastre é o farolim do trem de aterragem do avião, recuperado dos destroços em Superga.»
A EMBAIXADA
«Portugal sentiu de uma forma muito particular esta tragédia, e esta imagem corresponde à Embaixada de Itália. Estiveram lá, no dia a seguir à tragédia, muitos milhares de portugueses, num movimento popular que visou expressar a tristeza coletiva em relação ao que tinha acabado de acontecer. Ao que sei, no momento em que esta foto foi tirada, estava uma comitiva do Benfica a ser recebida na Embaixada, que incluía o próprio Francisco Ferreira. É inequívoco que este evento foi marcante, para os lisboetas em particular, e para os portugueses em geral, sendo um assunto muito mediatizado à escala global.»
FRANCISCO FERREIRA
«O Benfica venceria, poucos dias depois, a final da Taça de Portugal, frente ao Atlético, e há uma fotografia onde se vê o Francisco Ferreira, antes do jogo, com o rosto muito amarfanhado. Ainda estava muito combalido com tudo o que se passou, em parte por eventualmente se sentir responsável, sem o ter sido, por tudo o que se passou.
Vê-se o galhardete que o Torino ofereceu ao Benfica nesse jogo. Aliás, na imagem da equipa do Torino, que temos a oportunidade também de ter aqui em modelo gigante, vê-se esse galhardete na mão do secretário técnico Ernő Egri Erbstein. Trata-se de uma peça que faz parte dada exposição permanente do museu Cosme Damião, que trouxemos para aqui. Fizemo-lo acompanhar desta peça, que muita gente não saberá de que se trata, que é o presente do Torino para o Benfica, entregue pelo vice-presidente do clube italiano ao presidente Mário Madeira, uma miniatura em prata da Mola Antonelliana de Turim, o grande ex-libris da cidade, comparável, provavelmente à nossa Torre de Belém ou à Torre Eiffel.
TROCA DE GALHARDETES
Esta fotografia que documenta a troca dos galhardetes entre Francisco Ferreira e Valentino Mazzola, havendo a curiosidade de fazer parte do espólio de Francisco Ferreira, que mais tarde foi entregue ao Benfica. As botas também fazem parte do acervo do clube, e pertenceram a Francisco Ferreira. Foram doadas pela família ao clube. A taça do jogo, destinada ao vencedor, foi oferecida pela Olivetti, uma empresa italiana bastante conhecida. Curiosamente, o vencedor foi o Benfica, e digo curiosamente porque, se calhar, esperava-se que fosse o Torino, dada a dimensão que o clube tinha, e embora o Benfica fosse já um grande clube, não tinha a projeção a extrafronteiras que tinha o Torino, que tinha nas suas fileiras nomes muito conhecidos no mundo. Estamos em 1949, ainda não tínhamos chegado à fase em que o Benfica ultrapassou as fronteiras, esta vitória foi extremamente importante, não só para o Benfica, mas para o futebol português. A taça da final, entregue a Francisco Ferreira, é também uma peça que temos na exposição permanente e que acompanha o galhardete para documentar esta história.
FOTO DE AMADEO FERRARI
Esta é a última foto do Grande Torino. Foi efetivamente oferecida a Francisco Ferreira, por Amadeo Ferrari, emoldurada, e estava numa parede em destaque na sua casa. Há, inclusivamente, um número da revista Plateia em que é possível vê-la na sala de casa do Francisco Ferreira. O Torino ficou-lhe na memória para sempre.
GRAVURAS DOS FALECIDOS
Nesta parede temos as pessoas que faleceram no desastre, jogadores e não só, dirigentes, jornalistas, staff, e também pertence ao acervo do Torino. É importante dizer que a opção de não serem fotografias, mas sim estes desenhos maravilhosos do Gianpaolo Muliari, foi propositada. Muliari é o diretor do Museu do Grande Torino, com quem fizemos este trabalho, e também artista plástico. Nessa medida, considerámos que seria interessante ter aqui as imagens desenhadas.
JOGO DE GÉNOVA
Aqui foi onde tudo começou. Este jogo em Génova, entre a seleção portuguesa e a seleção italiana, constitui o momento da aproximação entre Francisco Ferreira e Valentino Mazzola, é daqui que decorre a combinação do jogo, é daqui que o Francisco Ferreira vem entusiasmado e comunica à direção do Benfica o seu interesse em que seja o Grande Torino, a jogar com o Benfica na sua festa de homenagem. Muita gente menciona este jogo do 3 de Maio de 1949 como o da festa de despedida de Francisco Ferreira, mas não é verdade que tenha sido uma festa de despedida. Ele só deixou de jogar três anos depois, e tratou-se de uma festa de homenagem, pelo seu prestígio, por tudo o que fez desde 1938, quando veio para o Benfica, até 1949, onze anos, era foi capitão da seleção nacional e capitão do Benfica. Esta foi uma homenagem que se percebe perante a carreira deste jogador e a importância que teve na altura. O facto de termos trazido a melhor equipa da Europa, e uma das melhores do mundo, prestigiou imenso o evento.
LUTO SEM FIM
Da tragédia parece que nasceu uma flor, tocando ali no poema do Arpino, não é? Que diz, nós tínhamos uma flor, porque também este Torino do pós-guerra, era um clube que aquecia os corações dos turinenses e dos italianos, numa Itália destruída pela guerra, sem esperança. O Grande Torino era um foco de mobilização, do entusiasmo e da alegria que tinha deixado de existir entre a população. Logo, é muito importante ver este Torino como um fenómeno social. A lenda que ficou, ainda hoje é celebrada, inclusivamente pelos mais novos, em Turim, que se deixam levar por esta história. O Torino é um clube de meio da tabela já há muitos anos, infelizmente só voltou a ganhar um título em 76, mas ficou a lenda, e como essa não conheço igual. O acidente constituiu um momento transformador, e há um livro que se chama «O Dia Em Que O Futebol Italiano Morreu», escrito no âmbito desta história. Mas eu não diria que morreu, mas que se transformou.
AMIZADE BENFICA-TORINO
Essencialmente a partir do desastre, nasceu essa relação de amizade entre Benfica e Torino, que foi uma flor que brotou da tragédia, e que perdurou ao longo dos tempos. Temos vários exemplos: o Benfica sempre que foi a Turim, ou até mesmo a Milão, que não é muito distante, sempre fez questão de ir em romagem a Superga, depositar um ramo de flores. E não é de agora, em 1956, quando o Benfica esteve em Turim por ocasião de uma Taça Latina, os jogadores (na imagem, Zezinho com a mão sobre Sandro e atrás Fernando Caiado, Salvador, Francisco Calado e José Águas) encontraram-se com os filhos de Valentino Mazzola, Ferrucio e Sandro, que surge atrás do irmão, três anos mais novo. Mas o próprio Francisco Ferreira esteve com Sandro Mazzola, em Lisboa, por ocasião do Inter-Celtic da final da Taça dos Campeões Europeus de 1967, disputada no Estádio Nacional onde o pai, Valentino, jogou pela última vez...