A BOLA FORA «Na pré-época treinávamos às 4.30 da manhã»
Mais de sete mil quilómetros separam Vila do Conde da Arábia Saudita, país que acolhe a família de Marcelo, defesa-central que brilhou no Rio Ave e que chegou ao Sporting no momento mais conturbado dos leões. A história do brasileiro que escolheu Vila do Conde - a terra da mulher - para viver.
- À hora que te ligo, o que estás a fazer?
- Estava a jantar com um amigo cá em casa e estamos à espera para ver a Champions.
- Assinaste pelo Al Tai em julho. Como é que está a ser escrita esta história na Arábia Saudita, depois de época e meia no Paços de Ferreira?
- O início foi muito difícil, porque é um país completamente diferente e com uma cultura muito própria, mas agora estou acostumado e a gostar. Eu vivo numa cidade muito fechada que não é como Riade ou Jeddah que são mais modernas. Hail é uma cidade histórica que fica no interior centro da Arábia Saudita. Tenho que ser sincero: quando cheguei, fiquei chocado porque percebi que nada havia para fazer. Em Portugal, moro em Vila do Conde, eu adoro estar perto do mar. Aqui não tem álcool, para mim é tranquilo porque eu não bebo, mas há essa limitação. Também não há festas nem temos possibilidade de celebrar os feriados como o Natal e o Ano Novo por causa da religião.
- É uma vida social limitada?
- É treino-casa e a convivência que temos é entre os estrangeiros da equipa. Está cá o Dener que também jogou em Portugal, chegou um argentino e havia um brasileiro que foi embora há pouco. Frequentamos a casa uns dos outros, de resto a única coisa que há para fazer é ir ao shopping.
- Vivem num condomínio fechado?
- Sim, mas aqui os condomínios ainda não estão preparados para receber estrangeiros. Estamos nuns chalés que pertencem a um hotel. As cidades maiores têm condomínios bons só para pessoas que vêm de fora para que possam ter uma vida mais à vontade.
- Quando se fala no campeonato saudita, diz-se que a principal atração é a parte financeira. No teu caso também?
- Sem dúvida! Aqui, a parte financeira é muito boa e é claro que foi o que me atraiu em primeiro lugar. Cada equipa pode ter sete estrangeiros, no próximo ano serão oito e isso melhora a qualidade do campeonato. Sinceramente, no início não estava à espera que o campeonato fosse tão bom. O facto de ser uma liga que paga bem, atrai muitos jogadores e treinadores. Temos aqui alguns portugueses: o João Pedro, o José Gomes, o Leonardo Jardim saiu há pouco tempo. E muitos colegas que passaram pela nossa liga, como o Marega e o Talisca.
- Quais são as principais diferenças entre o futebol português e o saudita em termos de condições de trabalho?
- Em Portugal, estamos habituados a ter praticamente tudo, os clubes disponibilizam todo o apoio que um jogador necessita. Aqui é diferente: ficamos à espera da boa vontade deles. Eu estou à espera do visto para a minha mulher e para a minha filha há um mês. Quando vou falar com eles é sempre a mesma conversa: na próxima semana temos isso, mas depois é na outra e na outra e a verdade é que continuo sem os papéis. Apesar do clube ter boas condições de trabalho, a mentalidade é diferente. Sou eu que lavo a minha roupa, sou eu que levo as chuteiras e as caneleiras para o jogo. Mas, de uma forma geral, os clubes têm boas condições. Os estádios são bons, praticamente novos, e têm dos melhores relvados onde já joguei.
- A tua mulher está contigo?
- Neste momento não. Esteve cá com visto de turista e agora estamos à espera do visto do governo que lhe permite ficar cá mais tempo. Ela está em Portugal à espera que isso fique tratado e também porque precisava de levar a minha filha ao pediatra e às vacinas.
- Tens algum episódio caricato por causa da diferença cultural ou religiosa?
- Quando cheguei, logo nos primeiros dias, marcaram o treino para as quatro e meia da manhã. Achei estranho e pensei que era brincadeira. Mas era bem real: na pré-época treinávamos às quatro e meia da manhã e às nove da noite. Saía do treino da manhã e ia dormir. Foi estranho, mas no verão faz muito calor, 48, 50 graus. É por isso que os sauditas vivem mais à noite do que de dia: acordam tarde, comem alguma coisa, começam a sair de casa às cinco da tarde e depois vão dormir às quatro ou cinco da manhã. No início tive muita dificuldade para me habituar a esses horários.
- Vamos recuar uma década até ao tempo em que aterraste em Portugal para vestir a camisola do Ribeirão. Queres contar como foi essa transição?
- Eu fiz a formação no Vasco da Gama e entretanto apareceu a possibilidade de ir para Portugal. Como não estava nos planos ser utilizado no plantel sénior, pedi para me libertarem e assim foi. Rescindi o contrato e fui para o Ribeirão. Tinha o sonho de jogar na Europa. Vim sozinho com 21 anos e como fiz um bom campeonato no Ribeirão, chamei a atenção do Rio Ave. Estive sete anos ligado ao Rio Ave: um emprestado ao Leixões e seis a representar o clube.
- Posso dizer que tens uma costela vila-condense?
- Acho que é mais do que uma [risos]. Eu adoro Vila do Conde, a minha ideia é ficar lá a viver. A minha mulher e a família dela são de lá e eu adoro a cidade. Só não gosto do vento, do frio e da temperatura do mar. Há praia, mas não aproveito muito. A minha mulher é portuguesa e eu também tenho cidadania. É bom porque o passaporte português tem muitas vantagens.
- A chegada a um clube grande, o Sporting, foi a recompensa por todo o trabalho?
- Sem dúvida. O Rio Ave fez boas épocas, fomos à Europa e foi nessa altura que apareceu o Sporting. Nem pensei duas vezes, porque o sonho de qualquer jogador que esteja em Portugal é representar um grande e eu não era exceção. Aceitei logo o desafio. Não fiquei lá muito tempo por falta de paciência da minha parte. Estava habituado a jogar sempre e ali não estava a ser opção, às vezes nem para o banco ia, ou seja, não me sentia feliz. E foi neste contexto que apareceu a proposta do Chicago da MLS [Major Soccer League]…
- Chegaste ao Sporting numa fase muito delicada…
- Sim, quando cheguei ao Sporting o clube estava totalmente perdido. Ninguém sabia o que ia acontecer, ninguém sabia o que estava ali a fazer. Assinei pelo Sporting em janeiro de 2018: o presidente era o Bruno de Carvalho, o treinador o Jorge Jesus. Os ataques à Academia foram em maio e depois disso ficou uma confusão. Ficámos sem saber quem seria o presidente ou o treinador. Foi um período difícil. No meu primeiro dia de trabalho, a equipa teve uma reunião com o treinador sérvio, Sinisa Mihajlovic, e de repente deixámos de ter mister. Até nos deram uma semana de folga, porque havia uma enorme indefinição. Entretanto, muitas pessoas saíram. O presidente interino foi o Sousa Cintra, depois veio o Frederico Varandas e as coisas melhoraram. Felizmente, agora, o clube está estável, mas quando lá cheguei era um barco à deriva.
- E o ambiente no balneário?
- A falta de estabilidade não traz nada de bom ao balneário. Tínhamos um plantel muito forte, com grandes jogadores como o Bruno Fernandes, o Nani, o Coates, o Mathieu. Tínhamos uma grande equipa, só faltava estabilidade. Depois da chegada do Varandas, as coisas começaram a melhorar muito.
- Hesitaste na decisão de ir para Chicago?
- Quando apareceu a proposta, pedi logo informações ao Fredy [Montero], que já tinha jogado na MLS. Ele disse-me maravilhas daquilo e eu fiquei entusiasmado e muito interessado. Aceitei o desafio e ainda bem, porque valeu a pena. Adorei Chicago! Acho que é a melhor cidade dos Estados Unidos. É muito bonita, organizada e no verão tem muita vida. Os americanos aproveitam muito o verão, porque o inverno é rigoroso. Quanto à MLS: é uma boa liga. Eu costumo dizer que é parecida com a saudita, a maior diferença é que aqui não temos a mesma visibilidade. Lá também conseguem atrair pessoal com qualidade. Apanhei o Nico Gaitán e o Bastian Schweinsteiger. Também foi bom para aprender a falar inglês, melhorei muito.
- Foste sozinho?
- A minha mulher foi comigo, a minha filha ainda não era nascida.
- Tens alguma história de lá?
- Sim. Quando estávamos em estágio, no hotel, os jogadores recebiam vouchers para o pequeno-almoço num café ou restaurante fora dali. E, às vezes, também nos davam dinheiro para irmos jantar a um restaurante fora do hotel. Isto na véspera dos jogos ou mesmo no dia do jogo. Para mim era muito estranho não comer com os meus companheiros. Também recebíamos ajudas de custo nos dias em que estávamos fora de casa. A cultura americana é totalmente diferente, há muita liberdade. Se o jogo fosse às quatro da tarde, só tinha de chegar ao estádio duas horas antes. Equipava-me, ouvia a palestra e ia jogar.
- E os jogadores são regrados, tendo a liberdade de poder escolher onde comer, por exemplo?
- Não, de todo! Eles comem o que lhes apetece. De manhã, muitas vezes, comiam comida mexicana: burritos e batatas. Não há qualquer pressão nesse sentido, nem em termos de resultados. O facto de os clubes não descerem de divisão torna as coisas mais fáceis. Lutar para ser campeão ou lutar para não descer é uma pressão diária muito grande.
- Na Arábia Saudita há pressão de resultados?
- Aqui há. O Hail tem duas equipas: a minha e o Jabalain, que está na segunda divisão. O nosso estádio não é muito grande, leva oito mil pessoas, mas está sempre cheio. Os sauditas adoram futebol e pressionam, bem como o presidente que é muito duro. Ele costuma ir ao balneário no intervalo dos jogos e fala a seguir ao treinador. Às vezes incentiva, outras dá na cabeça dos jogadores e por vezes duplica o prémio. Em Portugal, é impensável um presidente descer ao balneário no intervalo, mas aqui é normal.
- Essa história do prémio é mesmo real? Já ouvi números alucinantes…
- Sim! Às vezes, o presidente diz um valor antes do jogo, mas, se estivermos a perder, chega ao balneário e dobra o prémio quando o jogo é importante.
- Há mulheres nos estádios?
- Sim, as mulheres sauditas podem ir aos jogos de há dois anos para cá. Mas têm de ficar no espaço destinado às famílias. Há um espaço para os homens que vão sozinhos e outro para os que vão acompanhados com as mulheres.
- E alguns com mais do que uma mulher, correto?
- Aqui, a maioria dos homens é casado com duas mulheres ou mais e tem muitos filhos. E cada homem pode ter até quatro mulheres. Às vezes, vejo sete ou oito pessoas dentro de um carro normal, vai a abarrotar e cheio de crianças. Olha, e por falar nisso, outra coisa bem diferente da Europa é o trânsito. Eles são mesmo malucos. Não cumprem regras e fazem coisas surreais. Se a estrada estiver cortada, eles vão passar da maneira que der. Ainda estes dias, eu ia na minha faixa, um carro ultrapassa-me e muda de sentido mesmo à minha frente. Não estava a acreditar naquilo, temos de estar sempre em alerta. Quando vou com a minha filha no carro, ando muito devagar, tenho sempre medo de ter um acidente. Eles batem a toda a hora, mas não se preocupam. A maioria dos carros são grandes, jipes e americanizados como os Chevrolet.
- Aí falam inglês?
- É complicado, porque quase ninguém fala inglês. Ou ando com o tradutor ou tenho de estar sempre a pedir ajuda por telefone. Quando vou ao supermercado tem de ser por gestos. Não consigo comprar carne no talho, escolho sempre a que já está embalada. Mas falando em supermercados, tenho sorte de ter um muito bom na minha cidade. E a Arábia Saudita é muito americanizada, tem todas as lojas grandes que há nos Estados Unidos. Mas, em termos de comunicação, é mesmo complicado. Ainda há pouco pedi comida para casa, o homem ligou-me e eu nada percebi. Só falava árabe, então foi um filme.
- De que sentes falta de Portugal?
- Sem dúvida do peixe, aqui só há congelado. Tenho saudades de um bom peixinho na brasa de Vila do Conde. O meu sogro trouxe muito bacalhau, tenho bacalhau até ao próximo Natal [risos].
- Se tivesses oportunidade de voltar a jogar um jogo, qual escolhias?
- A Taça de Portugal pelo Rio Ave quando perdi com o Benfica por 1-0 [2013/2014]. Fizemos um grande jogo e o resultado ficou decidido pelo golo do Gaitán. Para mim foi um jogo especial.